Pesquisadores analisam estratégias de conservação de ecossistemas e recuperação de áreas degradadas na segunda edição da série Conferências FAPESP 60 anos
A conservação de ecossistemas, como áreas florestais, pantanosas ou ocupadas por pastagens naturais, e a restauração de áreas já degradadas são essenciais para enfrentar, conjuntamente, dois dos maiores desafios globais atualmente: as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade.
Essas soluções baseadas na natureza são especialmente importantes para serem implementadas no Brasil, uma vez que a maior parte das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do país, que impulsionam o aquecimento global, está associada a mudanças no uso da terra, lideradas pelo desmatamento para abertura de áreas de pastagem ou agrícolas. A prática provoca a liberação de gás carbônico armazenado nas plantas e também a fragmentação e perda de hábitats, apontadas como duas das principais causas de declínio de espécies mundialmente.
A avaliação foi feita por pesquisadores palestrantes da segunda edição da série Conferências FAPESP 60 anos, com o tema “Mudanças climáticas e biodiversidade: os avanços da ciência”, realizada ontem (21/07). Os debates foram mediados por Ronaldo Pilli, vice-presidente da FAPESP.
“A conservação de áreas intactas representa hoje uma opção para manter os estoques de carbono. Já a restauração de áreas degradadas permitiria sequestrar carbono da atmosfera e a reconexão de fragmentos naturais, o que pode resultar em benefícios para a biodiversidade”, disse Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB).
De acordo com a pesquisadora, globalmente as mudanças no uso da terra e floresta representam 24% das emissões globais. No Brasil, atingem mais de 60% e vêm aumentando nos últimos anos em razão do desmatamento, principalmente da Floresta Amazônica.
Em 2019, por exemplo, o Brasil respondeu pela perda de um terço de florestas tropicais primárias no mundo e por 41% no período de 2002 a 2020.
“O que se observa é que essa perda de floresta primária vem ocorrendo acentuadamente em territórios indígenas, que tradicionalmente são áreas onde o desmatamento é muito baixo e que têm protegido a floresta ao longo dos últimos anos”, apontou.
Apesar de ocorrer em maior escala na Amazônia, essa perda não tem se restringido a esse bioma. Em 2020, o Cerrado perdeu uma área quatro vezes maior que a Grande São Paulo e o desmatamento tem crescido também da Mata Atlântica.
“Essas mudanças no uso do solo no Brasil representam uma via de mão dupla”, avaliou Bustamante.
“Ao mesmo tempo em que a conversão de vegetação nativa para a agropecuária, associada ao aumento da frequência de queimadas, tem impacto direto sobre as emissões de gases de efeito estufa, terá também impacto no setor agrícola, que será o que mais vai sofrer com as mudanças climáticas e com os efeitos das alterações na temperatura e na disponibilidade hídrica”, disse Bustamante.
Impactos na agricultura
Alguns dados apresentados por Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), referendam essas constatações.
Um estudo feito por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apresentado por Artaxo, indicou um aumento médio entre 4 ºC e 5,5 ºC na temperatura entre 2071 e 2099 na região central do Brasil, onde está estabelecido o agronegócio.
Outro estudo de autoria de pesquisadores da Embrapa Informática Agropecuária, publicado em 2019 e também citado por Artaxo, apontou que o Brasil está se tornando mais seco. As áreas no país com registro de alto índice de déficit de chuva, antes restritas à região do Nordeste, se estenderam para Goiás e Mato Grosso – dois dos principais Estados produtores de soja e carne.
“A economia brasileira baseada só na produção de carne e de soja, por exemplo, pode não ser competitiva daqui a dez anos ou mesmo na década atual”, disse Artaxo.
Segundo o pesquisador, as evidências das mudanças climáticas no planeta são extensas e incluem o aumento de eventos climáticos extremos, como as recentes inundações na Europa, ondas de calor nos Estados Unidos e no Canadá, crise hídrica no Brasil e aquecimento do oceano e da atmosfera.
As emissões de carbono, ele explica, estão fazendo com que as concentrações de gases que controlam o clima do planeta aumentem rapidamente – a de dióxido de carbono (CO2) aumentou 66%, a de metano 259% e a do óxido nitroso (N2O) 120% desde 1750 – e mudando a composição da atmosfera terrestre. Com isso, a temperatura do planeta já aumentou 1,2 ºC.
“Esse aumento de temperatura pode parecer pouco, mas é muito significativo para o funcionamento básico de um ecossistema. E tem contribuído para o aumento da frequência de eventos climáticos extremos que temos visto”, afirmou Artaxo.
De acordo com o pesquisador, a temperatura média nos continentes já aumentou 1,7 ºC, uma vez que eles aquecem muito mais do que o planeta como um todo porque os oceanos absorvem gigantescas quantidades de calor.
“Nos continentes, já ultrapassamos o limite seguro de aumento da temperatura, de 1,5 ºC, indicado pelo IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas]”, disse Artaxo.
Nos últimos 110 anos, a temperatura no Nordeste do Brasil, por exemplo, aumentou entre 2,2 ºC e 2,5 ºC. Já na região do Ártico aumentou mais de 3 ºC.
“Esse aumento muito significativo da temperatura afeta o funcionamento de ecossistemas, a biodiversidade, a saúde da pessoas e tem impactos socioeconômicos muito grandes”, afirmou Artaxo.
Impactos na biodiversidade
A partir de 2050, as mudanças climáticas podem se tornar o principal vetor da perda de biodiversidade global, apontou Carlos Joly, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp) e membro da coordenação do Programa BIOTA-FAPESP.
“Temos um conjunto enorme de fatores, que vão desde o aquecimento global, passando por mudanças na distribuição de chuvas, pela poluição, pelo uso excessivo de fertilizantes e pela introdução de espécies exóticas, entres outros fatores que têm exercido enorme pressão e levado ao desaparecimento de toda uma fauna de invertebrados”, apontou Joly.
Alguns desses invertebrados, como as abelhas, são importantíssimos para a manutenção da polinização das principais culturas agrícolas cultivadas em países como o Brasil, ele exemplificou.
O ritmo de perda de espécies indica que o mundo corre o sério risco de assistir nas próximas décadas a uma sexta extinção em massa.“A crise da biodiversidade está atingindo um limite muito perigoso”, afirmou Joly.
Na avaliação do pesquisador, enquanto a atual crise sanitária, causada pela pandemia de COVID-19, tem a perspectiva de ser solucionada nos próximos dois anos com o avanço da vacinação e a emergência climática poderá ser debelada em 100 a 150 anos com a redução significativa nas emissões de GEE, a perda da biodiversidade global poderá ser irreversível.
“Não vamos recuperar as espécies que estão sendo extintas hoje. Por isso, é preciso reverter as taxas de extinção antes que serviços ecossistêmicos [prestados pela natureza, como prover água limpa] sejam definitivamente comprometidos”, alertou.
A atuação da FAPESP no financiamento à pesquisa nesses dois temas – biodiversidade e mudanças climáticas – tem sido fundamental para o avanço dessas agendas em nível global, apontaram os participantes do evento.
“Cada vez mais diferentes nações e entidades supranacionais, mas também empresas responsáveis e partidos políticos têm fortalecido uma agenda que privilegia esses dois tópicos”, avaliou Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP.
“No Brasil, a FAPESP, a ABC [Academia Brasileira de Ciências], a SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], a Aciesp [Academia de Ciências do Estado de São Paulo] e as nossas universidades têm liderado um movimento para fundamentar o desenvolvimento do conhecimento baseado na pesquisa sobre a biodiversidade e as mudanças climáticas globais”, afirmou Zago.
A íntegra da Conferência pode ser assistida abaixo: