Por Fábio de Castro, da Pesquisa para Inovação | Uma empresa paulista está desenvolvendo uma nova bebida espumante de alta qualidade com base no mel de abelhas nativas brasileiras sem ferrão. Além de introduzir no mercado um produto único com alto valor agregado, o projeto tem o objetivo de estimular a conservação da fauna nacional e valorizar a cultura e o trabalho de comunidades produtoras locais.
O projeto é da Mirá, uma startup sediada em São Carlos, no interior paulista. A primeira fase das pesquisas já foi concluída, com apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP e o projeto agora entra em sua segunda fase, de desenvolvimento do produto final.
De acordo com a bióloga Juliana Massimino Feres, pesquisadora responsável pelo projeto, existem mais de 350 espécies de abelhas brasileiras sem ferrão, cujo mel tem propriedades de aroma e sabor muito especiais. Depois de trabalhar em diversos projetos científicos relacionados à cadeia de meliponicultura – como é chamada a criação de abelhas sem ferrão –, Feres percebeu que esse mel tinha potencial para o desenvolvimento de um produto de alto valor agregado.
“No convívio com a cadeia de meliponicultura, era evidente que havia um encantamento do público com o mel das nossas abelhas nativas e seus subprodutos, mas trata-se de um recurso limitado, de alto valor e não reconhecido pelo mercado. Percebemos que era possível usar esse recurso para um produto de valor agregado, que fosse atrativo para quem trabalha com a produção. Por isso começamos a pensar na bebida espumante”, explica Feres.
Em parceria com seu sócio na Mirá, o também biólogo Tulio Marcos Nunes, a pesquisadora começou então a estudar as alternativas para o processo fermentativo do mel de abelhas nativas, dando o pontapé inicial para o desenvolvimento da nova bebida.
Segundo ela, já existem no mercado algumas bebidas feitas a partir do mel de abelha comum, a Apis mellifera. Porém, as características do mel de abelhas sem ferrão eram de fato muito especiais e o sucesso da bebida foi grande já nos primeiros testes.
“Começamos a desenvolver o processo de fermentação e realizamos testes preliminares da bebida com amigos. A bebida mostrava potencial, mas com os testes identificamos os pontos cientificamente frágeis no processo. Foi aí que resolvemos pedir o apoio do PIPE-FAPESP para superarmos os problemas com a fermentação e começarmos a pesquisar o mercado para o produto”, diz Feres.
De acordo com Nunes, no PIPE 1, desenvolvido entre julho de 2020 e março de 2021, o objetivo era minimizar as incertezas em relação ao produto. O primeiro passo, após verificar se era viável fermentar o mel de abelhas nativas sem ferrão, era avaliar se o processo resultaria em uma bebida que fosse agradável e palatável.
“Depois disso, fizemos uma vasta caracterização química do produto, para saber como os compostos presentes no mel se comportariam na bebida. Desenvolvemos inúmeras receitas e selecionamos duas que tiveram resultados surpreendentes em relação ao sabor e aroma. Confirmamos ainda que as substâncias presentes no mel se preservaram na receita final, mantendo as características da matéria-prima”, afirma Nunes.
Os dois pesquisadores já trabalhavam com abelhas nativas sem ferrão desde o início de suas carreiras e, há quatro anos, estão desenvolvendo juntos a fermentação do mel dessas abelhas. “Eu também já tive uma cervejaria familiar e é daí que vem minha experiência com a fermentação”, conta Nunes.
“Vários estudos anteriores já demonstravam a riqueza química e biológica do mel de abelhas nativas, mas a pesquisa era incipiente e, então, tivemos que identificar e categorizar os compostos com os quais iríamos trabalhar”, explica Feres.
Segundo ela, seu sócio já dominava todo o aparato científico necessário para realizar a caracterização química e microbiológica dos compostos presentes no mel antes e depois da fermentação. Por meio de uma parceria com o professor Norberto Peporine Lopes, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Produtos Naturais e Sintéticos e da Central de Espectrometria de Massas de Micromoléculas Orgânicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), foi feita toda a pesquisa de base sobre essa rica matéria-prima.
“Constatamos que grande parte dos flavonoides e antioxidantes presentes no mel se manteve após a fermentação. E eles estão presentes no mel de abelhas nativas sem ferrão em quantidade muito maior que no mel da abelha Apis mellifera“, compara Nunes.
Também foram avaliadas quimicamente as substâncias voláteis presentes no mel, a fim de caracterizar quais delas tinham potencial para a obtenção de aromas e sabores de interesse. “Grande parte dessas moléculas era comum às do vinho branco, dando à bebida um aroma de abacaxi e flores, por exemplo”, diz Nunes.
Testes em campo e na mesa
Levando em conta a realidade da cadeia produtiva, os pesquisadores selecionaram as abelhas mais disponíveis e, dentro desse grupo, as que produziam um mel mais palatável. Foram escolhidas a mandaguari (Scaptotrigona postica), a jataí (Tetragonisca angustula) e a mandaçaia (Melipona quadrifasciata). Os testes com o público, então, foram intensificados.
“Para saber a reação do público, era preciso testar e chegar a vários consumidores finais, mas também ter acesso aos especialistas. Tivemos o apoio de Paola Carosella, empreendedora do ramo da alimentação, que colocou a sua equipe à disposição para testes”, conta Feres.
“Nossa metodologia incluía o desenvolvimento do produto junto com o cliente final. Tudo que é testado tem um retorno do público, que é incorporado e essa informação é levada de volta ao processo de aperfeiçoamento do produto, em sucessivos ciclos de aprendizado”, diz Nunes. “Queremos testar essas bebidas em associação ao chamado turismo de experiência”, afirma.
Trabalhando com um produto que traz uma nova experiência ao público, os pesquisadores precisavam de um espaço de testes que envolvesse o contato presencial com o local de produção, em conexão com a terra e a biodiversidade. O local escolhido foi um espaço rural em uma região de Cerrado no município de São Carlos, que também abriga a fábrica para fermentação e produção de mel.
“Ali o consumidor pode provar o produto em seu contexto. Trabalhamos com pessoas de um assentamento local que tem desenvolvido a matéria-prima conosco, além de outras comunidades, como quilombolas”, afirma Feres.
Segundo Nunes, o produto não deverá ter uma escala industrial muito grande, mas terá grande potencial para fomentar projetos sociais. “Do ponto de vista da conservação, a atividade de criação de abelhas é regenerativa – e a floresta em pé é uma necessidade para que o produto seja capaz de agregar valor”, explica.
Produto da sociobiodiversidade
De acordo com Feres, a opção por uma bebida espumante – como são conhecidos os vinhos com presença de dióxido de carbono obtido por uma segunda fermentação – foi feita porque o bouquet do mel de abelhas nativas possui um gosto residual bastante complexo. “Mas quando associamos com as bolhas, a riqueza de sensações muda bastante e é possível explorar toda a sutileza desse tipo de produto. O mel de abelhas nativas traz muito de uma sensação floral”, explica a bióloga.
Por sua própria formação, os sócios da Mirá tinham interesse em desenvolver um produto condizente com a conservação da biodiversidade brasileira. Feres tem mestrado e doutorado na área de genética e é especializada em gerenciamento ambiental e trabalha com conservação de recursos genéticos florestais, genética de populações, ecologia, biologia reprodutiva e meliponicultura. Além da Mirá, ela é sócia-fundadora da empresa Heborá, que também atua com produtos de abelhas sem ferrão.
Já Nunes, que tem mestrado e doutorado em entomologia, atua na área de comportamento animal, bioquímica e desenvolvimento de produtos de controle biológico. Além de sócio da Mirá é sócio-fundador da Decoy Smart Control, uma startup de biotecnologia que desenvolve biodefensivos para a saúde animal.
“Temos um olhar voltado para o desenvolvimento de produtos economicamente importantes da biodiversidade brasileira. A meliponicultura é uma atividade que cai como uma luva para essa finalidade. É uma atividade que precisa, necessariamente, de florestas preservadas e um meio ambiente saudável para que as abelhas produzam”, diz Feres.
Segundo ela, a produção de mel de abelhas nativas também gera desenvolvimento social. “Muitas das pessoas que desenvolvem a atividade em seus quintais são mulheres e isso é um fator importante de inclusão. Assim, contribuímos com as comunidades. Quando há subprodutos que elas podem desenvolver, acabamos envolvendo todos os pontos focais da cadeia da meliponicultura”, explica a pesquisadora.
Próximos passos
De acordo com Feres, o próximo passo, na fase seguinte do Programa PIPE-FAPESP, é refinar a ciência da fermentação e escalonar o produto. “Esse escalonamento será condizente com a realidade do projeto, em volumes como 200 ou 400 litros. Isso será necessário para podermos estudar como o produto se comportará na prateleira, se haverá maturação ou outros processos”, afirma.
Um dos desafios para os pesquisadores consiste em estabelecer um critério científico rigoroso na produção, a fim de evitar problemas como contaminantes ou off-flavours – como são chamados os perfis sensoriais indesejáveis na bebida.
“A fermentação do mel gera off-flavours, que são substâncias não palatáveis e a correção precisa ser minuciosa. Estamos desenvolvendo alternativas naturais, pois não faria sentido passar por todo o processo de produção de uma bebida inteiramente natural e ter no fim um produto com correções químicas” diz Feres.
Outro desafio envolve a padronização do produto, já que o mel não é uma matéria-prima uniforme, ao contrário, varia de acordo com a região onde foi colhido, o bioma em que a abelha está inserida e a estação do ano em que foi produzido. Mas os pesquisadores acreditam que poderão tirar vantagem dessa característica.
“Nossa proposta é incorporar essa variação em termos de safra, o que tornará o produto ainda mais exclusivo. A ideia é ter pequenos lotes, cada um com uma variedade de características bastante peculiares”, afirma Nunes.
Em termos de mercado, a Mirá pretende dissociar o conceito de seus espumantes do hidromel – uma bebida fermentada que também tem base no mel. Segundo os pesquisadores, quase toda a produção brasileira de hidromel é feita com o mel da Apis mellifera. “As poucas pessoas que conhecem o hidromel dificilmente tiveram boas experiências, por isso precisamos desvincular do nosso produto, que é totalmente diferente”, compara Feres.
“A partir da mesma matéria-prima podemos fazer diversas bebidas diferentes. Já fizemos alguns testes que resultaram em um vinho branco seco. É possível também fazer um vinho bastante seco, com bastante álcool e gaseificado, que fica muito próximo ao Brut, ou Demi-sec. Podemos fazer também com baixa graduação alcoólica e bastante doce. Nossa escolha pela bebida espumante é um diferencial e, ao mesmo tempo, temos uma ampla gama de possibilidades de novos produtos”, avalia Nunes.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa Para Inovação – Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.