Reflexões sobre os problemas e responsabilidades compartilhadas envolvidos na questão do consumo, determinante no acúmulo do lixo plástico
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Esconder
Imagens de agosto de 2015 voltaram a viralizar nas redes sociais em meados de 2018. Cenas registradas pelos cientistas americanos Christine Figgener e Nathan Robinson quando pesquisavam o mar na Costa Rica mostram a extração de algo, inicialmente imaginado como um verme, das narinas de uma tartaruga marinha, um macho da espécie Lepidochelys olivácea, ou simplesmente Oliva. Tratava-se de um canudo plástico, com mais de 10 cm.
Ingerido pelo animal, provavelmente na tentativa de expelir ou regurgitá-lo, o material terminou por acessar a passagem errada. A cavidade nasal das tartarugas marinhas se conecta por um longo ducto nasofaríngeo diretamente ao palato (céu da boca). O filme original, com cerca de 34 milhões de reproduções à época desta publicação, apresenta em oito angustiantes minutos a criatura indefesa em estado de dor física intensa, aflição que atravessa o observador ao estado de dor moral.
Reações
Uma pesquisa por informações sobre o perfil das buscas de termos associados à palavra-chave “canudo” no último ano em nosso país revelou entre os destaques de crescimento palavras como biodegradável, sustentável, inox, ecológico e outras afins. Quando a mesma pesquisa é feita com base no ano imediatamente anterior, aparecem associações sem qualquer interpretação temática ambiental.
De repente, um bom número de pessoas passou a olhar com desprezo a oferta destes descartáveis, recusando os canudos de plástico em bares e restaurantes e até mesmo carregando consigo canudos reutilizáveis para uso particular.
O governo do Distrito Federal, bem como diversas prefeituras no país, a exemplo de Rio de Janeiro e Santos, já orientam suas legislações com restrições à oferta de canudos plásticos descartáveis por estabelecimentos como bares, restaurantes e hotéis, seguindo uma tendência de mercado crescente.
História
O possível impacto do plástico oceânico emerge nas décadas de 1960 e 1970, com flagrante fracasso por parte da sociedade em geral e da comunidade científica mais ampla em reconhecer a magnitude do problema e seus efeitos globais.
O prosaico canudo, na fugacidade de seu consumo, é uma metáfora da economia linear a que nos submetemos nos últimos 200 anos. Esse modelo incompleto preconiza a extração de recursos do planeta (em boa medida não renováveis), a industrialização em bens, a distribuição de objetos, sua comercialização, consumo e descarte. Representação simbólica do estado de crise, o canudinho é um gatilho para o oportuno debate.
O problema
A observação imediata nos permite constatar o excesso de descartáveis, uma infinidade de objetos plásticos de uso único. Evoluirmos um pouco mais nos coloca frente a frente com um universo impressionante de embalagens, sobretudo plásticas. A conjugação desse imenso volume de objetos, a maior parte infelizmente não reciclada, lota lixeiras, aterros sanitários e lixões ou escapa para o ambiente, poluindo solos, sendo levado pela enxurrada aos rios e mares, ou virando lixo oceânico a ser ingerido por animais como Oliva, peixes ou pássaros marinhos.
Ao perambular pelos mares, sujeito ao atrito e à fotolesão, o plástico oceânico progressivamente se fragmenta e absorve componentes químicos contaminantes dispersos no ambiente. É essa a origem da bomba ambiental que conhecemos como microplástico, que, ao se inserir na base da cadeia alimentar, oportunamente poderá nos ser devolvido em meio à proteína animal ou, sem maior parcimônia, misturado até com o sal que consumimos cotidianamente.
O martírio de Oliva, assim como tantas outras imagens de contaminação ambiental por plástico oceânico, flagram outra verdade inconveniente (e sólida) sobre como lidamos mal com o resíduo do consumo e o quanto precisamos melhorar essa relação. Em nosso país, o gerenciamento dos resíduos é, a olhos vistos, uma parte importante desse problema.
Variados aspectos, conjugáveis entre si, corroboram para isso: infraestrutura de saneamento precária, falta de recursos de prefeituras, má governança pública, ação insuficiente de órgãos fiscalizadores, design inadequado de produtos e embalagens, pouca perspicácia da indústria petroquímica, de fabricantes de bens de consumo e varejistas, má educação ambiental de consumidores, dentre outros.
O Marco
Se por um lado razões para o problema não faltam, por outro contamos com um marco regulatório compreensivo. Sancionado em 2010, legisladores optaram por uma política de compartilhamento de responsabilidades entre os agentes: governos municipais, fabricantes, importadores, distribuidores, varejistas e consumidores.
Em linhas gerais, aos governos cumpre prover soluções sanitárias para destinação de rejeitos (materiais não reaproveitáveis) e de resíduos orgânicos, além de realizar a coleta seletiva; aos varejistas cabe a possibilidade de acolhimento de resíduos (materiais reaproveitáveis). O papel dos fabricantes, por sua vez, é articular os processos de logística, reaproveitamento de materiais e destinação ecológica de rejeitos, com orientação para envolvimento de cooperativas quando possível; já o consumidor deve promover o encaminhamento dos resíduos à coleta seletiva ou ao varejista.
Definidos os quadrados, a ideia é que os agentes sejam capazes de se organizar no sentido de minimizar desperdícios e racionalizar o consumo de recursos, concentrando esforços na inserção de seus produtos e embalagens nos fundamentos da economia circular.
A Marca
Tornado pauta relevante na agenda pública, o impacto do plástico oceânico atribui ao material o papel de vilão. A percepção do excesso de matéria dispersa no ambiente e seus impactos faz com que parte da sociedade, em boa medida, despreze a substância, desconsiderando inclusive sua importância nas diversas aplicações e na funcionalidade que flexibilidade da resina sintética confere à vida cotidiana.
Coordenado por um conjunto de organizações não governamentais, um inventário realizado em 2018 envolveu cerca de 10.000 voluntários em 239 limpezas em áreas litorâneas, realizadas em 42 países distribuídos em 6 continentes. Como resultado foram coletadas cerca de 190.000 peças plásticas, classificadas de acordo com as marcas dos produtos que embalavam.
O constrangimento alcança as marcas, sobretudo grandes fabricantes, cujo impacto flagrante e maior exposição determinam uma tomada de posição. Em geral partindo de suas matrizes, elas assumem compromissos de responsabilidade por suas embalagens no sentido da redução da poluição.
Em seu programa mundial “A World Without Waste”, anunciado no início de 2018, a Coca-Cola se compromete em reduzir o lixo, recolhendo e reciclando uma garrafa ou lata para cada unidade vendida até 2030. No Brasil, especificamente, uniu-se em 2017 à concorrente Ambev na elaboração de um programa conjunto de profissionalização e aparelhamento de cooperativas de catadores.
A Unilever, por sua vez, firmou compromisso em janeiro de 2017 para que 100% de suas embalagens de plástico sejam projetadas para serem totalmente reutilizáveis, recicláveis ou compostáveis até 2025.
A Danone, que vem progressivamente submetendo suas subsidiárias à certificação no Sistema B, firmou um plano de médio prazo para substituir suas embalagens. Até 2021, eles planejam usar garrafas PET 100% produzidas a partir de material reciclado em todos os seus principais mercados de água. Para 2025, a meta é alcançar 25% de material reciclado, em média, em suas embalagens plásticas, 50% em média para as garrafas de água e bebidas, e 100% para garrafas da marca Evian, que serão integralmente feitas de bioplástico.
Já a matriz da Nestlé compromete-se a tornar 100% de suas embalagens recicláveis ou reutilizáveis até 2025, com foco específico sobre o problema dos resíduos plásticos. No âmbito local, a sucursal brasileira divulgou recentemente uma campanha da marca de leite achocolatado Nescau, em sua apresentação de seis unidades em embalagens cartonadas (longa vida) de 200 ml, pronta para o consumo infantil, anunciando que pretende substituir gradualmente os canudos plásticos que acompanham as embalagens por material biodegradável, de papel.
A comunicação da campanha também recomenda, por meio de informação nas embalagens, pontos de venda e divulgações da marca, que consumidores mirins insiram os canudos dentro da caixa após o consumo do produto. A ideia é evitar que os canudinhos escapem para o ambiente, enquanto não é possível fazer a substituição integral dos modelos de plástico por biodegradáveis.
Simultaneamente, a marca firmou parceria com o Projeto Tamar, iniciativa conservacionista orientada à luta pela preservação das espécies ameaçadas de extinção, com atuação destacada na busca pela preservação das tartarugas-marinhas. As ações conectam com engenho elementos interessantes do processo e algumas observações podem contribuir no refinamento.
A proposta do “joga pra dentro” é positiva ao evitar a ingestão do canudo por animais, mas não reduz riscos de escape da embalagem cartonada – que, embora eficaz na conservação do que acondiciona, apresenta níveis de reciclagem historicamente baixos. Outra questão a ser observada é que a substituição de materiais plásticos por papel inicialmente se dará em apenas um em cada seis dos canudos da embalagem, condição justificada pela fabricante em razão das restrições iniciais à capacidade de atendimento à demanda por seus fornecedores.
A relativa baixa redução no impacto ambiental percebida na campanha, porém, não desmerece o potencial das ações da marca, que endereçam pontos sensíveis do problema. A forma da mensagem é pioneira ao envolver receptores oportunos (pais e filhos), a parceria com o Tamar foi uma boa sacada e a parcimônia na substituição de materiais, torçamos, se justifique no caráter experimental da iniciativa, que aperfeiçoada possa evoluir em escala rumo à vasta linha de produtos da empresa.
O Consumidor
Os usuários finais têm uma influência considerável no descontrole sobre a poluição por resíduos plásticos, já que muitos involuntariamente ignoram ou desconsideram os riscos e impactos ambientais de não se certificarem que seus resíduos de consumo não escapem para o meio ambiente. Decerto que a infraestrutura de saneamento disponível para a população é, em diversos casos, insatisfatória, criando um empecilho à destinação adequada de resíduos.
Existe, ainda assim, uma lacuna nos fundamentos de educação ambiental básica da população. Desconhecer a importância de seu papel no processo é em si um obstáculo importante para que os consumidores possam incorporar com legitimidade o papel cidadão de cuidar de sua cidade, responsabilidade dita compartilhada na própria lei. Este é um ponto fraco da legislação, que peca ao não fomentar explicitamente iniciativas educativas, apenas tangenciando a questão ao instar fabricantes a dar publicidade a iniciativas e locais para o descarte de resíduos.
A Crise
O cenário de crise ambiental progressiva descreve uma sociedade em desalinho, incapaz de se organizar e atender a regras básicas de higiene doméstica. A circulação de imagens chocantes da contaminação de oceanos por resíduos plásticos ativou gatilhos mentais capazes de desencadear uma mobilização coletiva, contexto em que a polifonia, a desorganização e a falta de repertório para lidar com o problema contribuem para um cenário de conflito, crescente contestação e protesto por parte da sociedade civil. A natureza difusa do problema em seu alcance global indica não somente danos à biodiversidade marinha, mas riscos diretos à saúde humana e em grande medida de exposição negativa das marcas associadas aos resíduos contaminantes.
Em resposta ao quadro preocupante, se ampliam as expectativas sobre agentes relevantes no protagonismo em busca de soluções eficazes. Aos fabricantes de bens de consumo, por exemplo, sobretudo não duráveis, a sensibilidade para conduzir uma abordagem específica orientada aos artigos com maior potencial de escape que introduzem no mercado, objetos plásticos pós-consumo de tamanhos menores e tempo de uso mais curto (objetos de uso único, descartáveis e embalagens as mais variadas).
Além das medidas possíveis envolvendo redução do consumo de materiais, substituições em suas composições por matéria biodegradável, alterações em design, dentre outras alternativas, importa também a reflexão sobre oportunidades de aproximação estratégica entre marcas e consumidores no envolvimento destes no processo de solução do problema. Sobre novas formas de interlocução capazes de qualificar as práticas de consumo, melhor familiarizá-los sobre as formas de uso de seus produtos, esclarecer a necessidade e importância das embalagens enquanto parte integrante da experiência de uso, o valor do engajamento em destiná-las adequadamente, impactos associados à não colaboração e, por fim, orientá-los sobre como e onde descartá-las.
O Desafio
Ao considerarmos as grandes marcas, seus impactos e os oportunos objetivos globais que definem, suas sucursais os incorporam e executam na razão das particularidades de seus mercados locais. Em nosso caso, importa reconhecer que a opção por caminhos sustentáveis no combate ao problema passa pela estruturação de uma economia dos resíduos dinâmica, capaz de absorver e processar, em seus mais variados tipos, os materiais residuais associados aos seus produtos.
Para além da infraestrutura, é preciso reconhecer e se aproveitar das transformações que o intenso fluxo de informações determina na forma como nos relacionamos, bem como do potencial de integração e engajamento que representa. O mundo virtual cristalizou a pauta do plástico oceânico na agenda pública e o martírio de Oliva é metáfora da crise.
Pessoas jurídicas públicas e privadas buscam, com dificuldades, adaptar-se, enquanto pessoas físicas apresentadas ao problema por meio dos canudos podem também estar inclinadas a reconhecer formas de lidar com outros potenciais contaminantes. É uma oportunidade para novas interlocuções entre marcas e seus usuários, para narrativas orientadas ao aprendizado conjunto sobre como resolvermos ou caminharmos com diligência e dividindo as responsabilidades neste rumo.
Em tempos de tragédias evitáveis, a pauta da educação ambiental pode conferir uma narrativa oportuna à convergência dos agentes e ao amadurecimento das relações de consumo. Talvez seja uma forma promissora de colaborar com os esforços para uma economia mais circular, ativar novos e auspiciosos gatilhos mentais.
Onofre de Araujo
Publisher, Portal eCycle
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