Tartarugas-da-amazônia mudaram o lugar de desova provavelmente devido aos impactos de queimadas

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A hipótese é que as tartarugas tenham mudado de lugar por causa da queimada próximo à Praia da Onça

Foto de Max Böhme no Unsplash

Em 2020, o Programa Quelônios da Amazônia registrou 120 mil novos filhotes de tartaruga-da-amazônia no Parque Estadual do Cantão, em Tocantins — um aumento de 300% em quatro anos.

Os pesquisadores notaram, porém, que as tartarugas mudaram o lugar da desova no ano passado. A suspeita é que tenha sido em decorrência de uma queimada ocorrida numa área próxima.

Preocupa também o projeto de ampliação da Hidrovia Araguaia-Tocantins, cujas obras de escavação e dragagem podem afetar de modo irreversível o habitat das tartarugas.

No ano passado, as águas do Rio Araguaia viram a população de tartarugas-da-amazônia ultrapassar a marca de 100 mil nascimentos. O aumento já vinha sendo registrado nos últimos quatro anos: em 2017 foram 40 mil, no ano seguinte 76 mil e em 2019 96 mil. Em 2020, porém, o Programa Quelônios da Amazônia (PQA), projeto do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), detectou pela primeira vez a presença de 120 mil novos filhotes.

Na Amazônia podem ser observadas 18 espécies de quelônios, entre aquáticas, semiaquáticas e terrestres. Especialistas afirmam ainda que há pelo menos outras cinco, ainda em processo de descrição pela ciência.  Só no estado do Tocantins ocorrem onze dessas espécies, sendo as mais populares a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa), o tracajá (Podocnemis unifilis) e os jabutis (Chelonoidis denticulatus e C. carbonarius).

Por ser a maior em tamanho entre todas — seu casco pode medir até mais de 1 metro —, a tartaruga-da-amazônia é a mais conhecida pelos moradores da região. E já foi também uma das espécies mais visadas entre os caçadores em razão de sua carne e sua gordura, esta utilizada como óleo para a iluminação.

Historiadores relatam um verdadeiro “massacre” da Podocnemis expansa em séculos passados. Estima-se que entre 1700 e 1903 214 milhões de ovos tenham sido coletados e enviados à Europa para atender à demanda por energia naquele continente. A espécie é um alvo fácil para a captura, uma vez que costuma desovar em praias, onde fica bastante exposta e vulnerável.

Apesar das ameaças do passado, o trabalho do Quelônios da Amazônia tem garantido excelentes resultados. “O PQA é o maior projeto de conservação animal do Brasil. Existe há 40 anos e atua em vários estados do Norte. Em Tocantins, o projeto está sendo realizado no Rio Araguaia, próximo ao município de Caseara, no Parque Estadual do Cantão, uma área de preservação permanente”, revela Wilson Rufino Dias Júnior, coordenador do programa.

O PQA inicia seu trabalho de monitoramento dos ninhos dos quelônios em meados de setembro. É nesse mês que as fêmeas começam a desovar. A espécie desova uma vez por ano; em média, cada ninho contém 100 ovos. A partir daí, são aproximadamente 60 dias de incubação, até que nasçam os filhotes em novembro e dezembro.

Durante todo esse período, as equipes do projeto monitoram as praias que são pontos de desova, sinalizando os ninhos com estacas numeradas. Quando chega a hora dos nascimenos, ajudam as tartaruguinhas a chegarem ao rio.

Impacto das queimadas

Desde 2018, a Praia da Onça era um dos locais de desova das tartarugas-da-amazônia no Parque Estadual do Cantão. No entanto, em 2020, apesar de terem apresentado o mesmo comportamento de ficarem boiando na frente desta localidade, elas acabaram colocando seus ovos em outra praia, chamada de Abrãaozinho.

“A hipótese é que elas tenham mudado de lugar por causa dos efeitos causados pelo fogo. Houve uma queimada muito grande próximo à Praia da Onça e isso pode ter alterado o padrão reprodutivo. As tartarugas buscaram um local onde se sentiram mais seguras”, diz o engenheiro ambiental Thiago Portelinha, pesquisador da Universidade Federal do Tocantins, uma das parceiras do Projeto Quelônios da Amazônia.

Ele explica que as tartarugas-da-amazônia preferem desovar em praias altas, de areia branca, em áreas com menos perturbações humanas.

Entretanto, assim como em 2019, a região amazônica enfrentou muitos incêndios no ano passado. De acordo com dados do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), entre janeiro e outubro de 2020 foram destruídos 6.920 km² de área verde no bioma, 23% a mais que no mesmo período do ano anterior.

“As tartarugas têm preferência pela noite porque ficam mais camufladas. Provavelmente a queimada na área próxima causou mesmo a mudança. Possivelmente a quantidade de luz fez com que as fêmeas se sentissem muito expostas aos predadores e procurassem outro local de desova”, concorda a engenheira ambiental Maria Augusta Agostini, pesquisadora do Centro de Estudos dos Quelônios da Amazônia (Cequa), outro parceiro do PQA.

Outra alteração observada no comportamento desses quelônios de Tocantins foi a profundidade dos ninhos, que na Praia de Abrãaozinho estavam mais fundos — tanto que os colaboradores do projeto tiveram maior dificuldade em encontrá-los no momento da soltura dos filhotes. Não se sabe ainda exatamente a razão pela qual houve essa mudança, mas há preocupação caso esse padrão seja repetido no futuro.

“Covas mais fundas significam que os filhotes podem passar mais tempo no ninho e que com isso fiquem mais sujeitos aos ataques de predadores”, afirma Maria Augusta.

E não é só. Existem trabalhos que comprovam que o diâmetro do grão de areia influencia na temperatura do ninho. “Temperaturas mais altas produzem um maior número de fêmeas em relação ao total. Portanto, se esse comportamento continuar, pode ser que com o passar dos anos a população de tartarugas do Rio Araguaia tenha mais fêmeas, podendo influenciar na variabilidade genética da região”, afirma Wilson Júnior.

“Além disso, no rio Araguaia existe o problema de ‘repiquetes’”, continua o coordenador do PQA. “Ou seja, o aumento repentino no volume das águas devido a chuvas na cabeceira do rio e seus afluentes, causando o alagamento dos ninhos. Isso faz com que a areia fique compactada, impossibilitando a saída dos filhotes do ninho”.

Monitoramento da espécie

Uma curiosidade observada na desova de 2020 foi a descoberta de alguns filhotes albinos. Essa condição genética rara ocorre quando indivíduos com certo grau de parentesco cruzam. Embora a probabilidade de um quelônio nascer com albinismo é de uma em 2 milhões, o sistema e o comportamento reprodutivo da tartaruga-da-amazônia favorecem essa condição, tornando o albinismo não tão incomum para a espécie.

“Filhotes albinos já foram verificados em alguns ninhos em outros anos em Tocantins, mas a frequência desta ocorrência precisa ser monitorada. O aumento no número de filhotes albinos pode indicar que a população está diminuindo tanto que indivíduos aparentados estão se relacionando”, ressalta Wilson Júnior.

O monitoramento constante da espécie é tão importante quanto seu papel no ecossistema amazônico. Além de ser alimento para outros animais, como onças e jacarés, através de suas fezes a Podocnemis expansa faz o trabalho de dispersão de sementes na floresta, e também ajuda na manutenção da qualidade da água. “Ademais, essa espécie representa uma grande importância socioeconômica para as populações tradicionais, principalmente indígenas e ribeirinhas, podendo ser a sua principal fonte de proteína animal”, destaca Thiago Portelinha.

Outra questão que merece a atenção é em relação a um projeto do governo federal para a ampliação da Hidrovia Araguaia-Tocantins, de modo a permitir o transporte rápido de soja e minérios para a China e a Europa. Os planos envolvem a escavação e dragagem de milhões de metros cúbicos de rochas e areia.

“Qualquer mudança no ambiente natural deve ser realizada com muita cautela”, alerta Wilson Júnior. “Existem trabalhos genéticos de tartarugas e tracajás na bacia Araguaia-Tocantins que comprovam que as características dos rios, que chamamos de barreiras naturais, impedem ou diminuem a migração de indivíduos. Isso faz com que existam populações diferentes de quelônios da mesma espécie. Sendo assim, a modificação dessas barreiras pode alterar a dinâmica populacional, ou seja, indivíduos que estavam adaptados a um local terão que conviver com animais adaptados a outro, e não há como saber como a natureza responderá”, alerta Wilson Júnior.

Ele lembra ainda que a maioria das alterações antrópicas vem com aumento de habitantes. “É quase certeza que haverá uma diminuição no número de quelônios, tanto por causa das alterações do habitat, quanto pelo consumo dos humanos para alimentação, o impacto mais significativo para as espécies de tartarugas”, lamenta.


Fonte: Mongabay – Licenciado sob Creative Commons Attribution-NoDerivatives 4.0 International License


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