Por Giselle Soares, da Pesquisa Fapesp | Um grupo de pesquisadores obteve evidências de comunicação acústica em 53 espécies de animais que eram consideradas silenciosas até então. Os registros sonoros abrangem 50 espécies de tartaruga; uma de cecília, anfíbio popularmente conhecido como cobra-cega; uma de tuatara, um réptil endêmico da Nova Zelândia; e uma de peixe pulmonado, a piramboia, encontrada em rios da Amazônia e Pantanal. Em comum, esses distintos animais apresentam duas coanas, cavidades que ligam as narinas à laringe, órgão com função respiratória e onde os sons são produzidos.
Segundo artigo publicado no final de outubro na revista científica Nature Communications, essas novas evidências são um indício de que, nos vertebrados, a troca de informações por meio da emissão de sons pode ter surgido há mais de 407 milhões de anos, durante o Devoniano. Nesse período geológico, teria vivido o último ancestral comum de todos os vertebrados dotados dessas cavidades e de pulmões. Os primeiros vertebrados terrestres com quatro membros (tetrápodes), grupo que hoje inclui os mamíferos, os répteis, as aves e os anfíbios, originaram-se de peixes pulmonados que tinham nadadeiras com ossos e viveram provavelmente nessa época. A piramboia é uma das seis espécies atuais que pertencem a esse grupo de peixes ancestrais que respiram o ar.
Por essa hipótese, a capacidade de se comunicar por som teria surgido apenas uma vez no processo evolutivo, entre os peixes com pulmões do Devoniano. Em seguida, os nascentes tetrápodes herdaram não só essas estruturas respiratórias de seus antepassados aquáticos, mas também a faculdade de emitir mensagens por som. Alguns autores, no entanto, defendem a ideia de que a comunicação acústica surgiu diversas vezes e de forma independente nos variados grupos de vertebrados terrestres, em um processo que os biólogos denominam evolução convergente.
Primeiro autor do trabalho, o biólogo brasileiro Gabriel Jorgewich-Cohen explica que a comunicação sonora pode ser definida como uma interação acústica entre pelo menos dois animais mediada por sinais e governada por regras. “Ruídos produzidos acidentalmente são considerados como ‘efeitos colaterais’ de outros comportamentos e não contam como comunicação”, esclarece Jorgewich-Cohen, que estuda evolução como aluno de doutorado da Universidade de Zurique, na Suíça. “Portanto, não consideramos como comunicação tosses, arrotos e outros sons indesejados que não transmitem uma mensagem.”
A equipe constatou que as espécies estudadas se comunicam com um repertório variado de sons, que inclui grunhidos, gorjeios, bufos e outros tipos de ruído. Algumas espécies “falam” várias vezes ao dia, outras são mais quietas. Os machos produzem sons para cortejar as fêmeas e defender seu território.
As gravações de áudio e de vídeo foram realizadas em cativeiro, em piscinas plásticas, a fim de garantir que todos os sons captados vinham mesmo dos animais estudados. Cada espécie foi registrada por pelo menos 24 horas, cobrindo suas atividades diurnas e noturnas. Os sons subaquáticos foram obtidos com o OceanBase, um equipamento para monitoramento desenvolvido pelo Laboratório de Acústica e Meio Ambiente da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) em parceria com a empresa Bunin Tech. Antes de registrar as vocalizações das espécies, o sistema foi empregado para captar o som ambiente sem a presença de nenhum animal para contabilizar possíveis ruídos ou interferências.
O biólogo Lucas Forti, da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), que não participou do estudo, comenta que sinais acústicos permitem interações sociais fundamentais, como aquelas envolvidas com a reprodução e a territorialidade. Seu sucesso é determinante para a sobrevivência dos organismos envolvidos. Ele pondera que ainda há uma grande incerteza sobre a origem evolutiva da comunicação acústica entre vertebrados. “Isso se explica, amplamente, pela falta de evidências comportamentais sobre comunicação acústica em certos grupos taxonômicos”, explica Forti. “Ao contrário do que os autores sustentam nesse novo estudo, as evidências anteriores, fundamentadas em características filogenéticas e anatômicas dos tetrápodes, indicavam que esse comportamento tinha surgido de forma independente em diferentes tipos de animais.” Um artigo dos biólogos Zhuo Chen e John J. Wiens, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, publicado em 2020 também na Nature Communications, sugere que a comunicação sonora surgiu múltiplas vezes, de forma independente, em diferentes grupos de vertebrados ao longo dos últimos 200 milhões de anos.
Todavia, Jorgewich-Cohen destaca que outros trabalhos se alinham com a hipótese de que a comunicação acústica tem uma origem evolutiva única e antiga. “Apesar de haver uma grande variedade de mecanismos anatômicos capazes de produzir som, todas as linhagens de tetrápodes e peixes pulmonados têm pulmões como fonte física de seus comportamentos de vocalização”, comenta o biólogo. “Em nosso artigo, revisamos a análise feita por Chen e Wiens e incluímos as evidências das espécies cujos sons fomos os primeiros a registrar. Ao fazer isso, vimos que os dados mais completos favorecem nossa hipótese.”
De acordo com Forti, o estudo do colega brasileiro representa uma importante contribuição para o avanço do conhecimento sobre a origem da comunicação por sons entre os vertebrados terrestres. “O trabalho é um grande motivador para se explorar mais detalhadamente o uso de sinais acústicos por diversos animais que ainda não tiveram seus repertórios comportamentais estudados”, comenta o pesquisador da Ufersa. No momento, Jorgewich-Cohen está trabalhando em artigos que descrevem em detalhe o repertório acústico de algumas espécies e, no futuro próximo, pretende dedicar-se a estudos de bioacústica e cognição em répteis.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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