Desde sempre, os povos indígenas utilizam os sinais da natureza para guiar o seu modo de vida. Seu calendário é regido pelo ritmo das plantas ou da chuva, por exemplo. Através deles, determinam o melhor momento para fazer o plantio de alimentos. Todavia, nos últimos anos, tudo está diferente. “O clima mudou totalmente. A chuva tem atrasado e parado muito antes do normal. A flor do ipê-amarelo está caindo mais tarde e o canto da cigarra está atrasado”, diz Yakunã Ikpeng, cacique da aldeia Arayo, no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso.
O que Yakunã e seu povo têm percebido é que a maior floresta tropical do mundo, a Amazônia, já não é a mesma. Ela não é mais úmida como no passado e por esta razão, todo o clima na região foi afetado. Devido ao crescente desmatamento e ao avanço das áreas urbanas sobre a mata, o volume e a periodicidade da chuva trazida pelos chamados “rios voadores”, fenômeno formado pelo vapor d’água produzido pelas árvores, foram impactados.
Com isso, o fogo, uma das principais ferramentas utilizadas pelos indígenas no cultivo de suas roças, se tornou perigoso. Até então, as queimadas eram controladas pela umidade da floresta.
Os indígenas do Xingu praticam a agricultura itinerante. A roça é feita em uma área diferente a cada intervalo de tempo, geralmente dois anos, dando tempo ao solo de se recuperar, além de resguardar os recursos naturais e preservar a biodiversidade. Quando é o momento do plantar os alimentos, a vegetação é queimada, um método ancestral, passado de geração a geração, que ajuda na fertilização e na aeração do solo, favorecendo a regeneração de plantas úteis na floresta secundária.
“Apesar de ser considerada polêmica por alguns, a queima incompleta favorece o acúmulo de carbono orgânico, um adubo para o solo. E os indígenas conhecem técnicas para controlar as chamas e evitar que se alastrem”, explica o engenheiro florestal Marcus Vinícius Schmidt, que pesquisou durante anos sobre a sustentabilidade dos sistemas produtivos desses povos da Amazônia.
Schmidt é o autor principal de um artigo científico publicado recentemente na revista Frontiers: “Indigenous Knowledge and Forest Succession Management in the Brazilian Amazon: Contributions to Reforestation of Degraded Areas” (na tradução para o português, “Conhecimento Indígena e Manejo da Sucessão Florestal na Amazônia brasileira: Contribuições para o Reflorestamento de Áreas Degradadas”).
Com a mudança no clima da Amazônia, assim como no resto do mundo, os indígenas tiveram que adaptar suas técnicas tradicionais. Isso ficou bastante evidente em 2010. Naquele ano, ocorreu o maior incêndio já registrado até hoje no Xingu, que tem uma área de cerca de 2,6 milhões de hectares. Quase 10% de seu território foi destruído pelo fogo, ou seja, mais de 250 mil hectares. Até então, as queimadas da roça, que eram facilmente controladas, começaram a sair de controle.
No artigo, Schmidt, ao lado de outros pesquisadores brasileiros e lideranças indígenas locais, relatam como um trabalho feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) está buscando desenvolver técnicas alternativas de manejo florestal baseadas em conhecimentos dos povos locais, mas adaptadas ao contexto atual, e também, visando favorecer a regeneração florestal.
“Nosso objetivo foi elaborar um modelo local a partir da lógica dos indígenas. Eles são povos agricultores e conhecem muito sobre plantas, os solos e a resiliência dos ambientes. A pesquisa mostrou como é importante considerar as causas que podem estar levando à degradação de ambientes, de forma preventiva, ao invés de simplesmente tentar investir em técnicas de restauração baseadas numa lógica que é diferente e que não dialoga com o manejo local”, garante Schmidt.
Junto com os Ikpeng das aldeias Moygo e Arayo, ambas no Xingu, foram testadas novas técnicas para evitar os incêndios. Antigamente, por exemplo, os indígenas faziam a queima da roça no horário mais quente do dia. Agora isso não é mais possível. Eles aprenderam que o ideal é colocar o fogo no final do dia e nunca deixá-lo sem supervisão.
“Hoje em dia é essencial vigiar a queimada”, diz Katia Ono, articuladora comunitária e assessora técnica em manejo de recursos naturais e fogo do Instituto Socioambiental.
Outra estratégia que vem sendo utilizada é a do aceiro. Antes da queimada do solo é realizada uma limpeza, em uma área demarcada em volta da futura roça, para a retirada das folhas, que quando secas são combustível para os incêndios sem controle. Todo o material orgânico é varrido. Desta maneira, caso ocorra alguma eventualidade, existe uma distância física entre as chamas e a floresta. Isto também permite acessar rapidamente estas áreas, na necessidade de apagar os focos de incêndios que aparecerem durante a queima da roça.
Os indígenas ainda estão fazendo o manejo de plantas mais resistentes ao fogo. O sapé, por exemplo, era muito usado por eles para a construção das casas, mas é uma planta extremamente inflamável e que necessita de queimas periódicas antes da coleta, de forma a renovar suas folhas para serem utilizadas como cobertura. Agora são utilizadas as folhas da palmeira inajá para esse fim, que não precisam dessa queima, e com isso, evita-se incêndios acidentais.
São plantados também pequizeiros e mangabeiras, junto com variedades de mandioca, que previnem o crescimento dos sapezais, e formam uma barreira contra o avanço das chamas. Embora estas questões ainda não tenham sido aprofundadas nesta pesquisa, são técnicas reconhecidas pelos indígenas que contribuem para a diminuição dos incêndios.
E não é apenas na roça que o fogo precisa ser vigiado. Outros povos do Xingu fazem o uso dele durante diversas atividades. É o caso da coleta de matérias-primas para fazer cerâmica – entre os Wauja –, ou para o assar dos peixes na beira do rio e de lagoas. Antigamente, os antepassados simplesmente deixavam as chamas se apagarem sozinhas, mas atualmente, isso não pode mais ser feito porque coloca em risco a mata. Qualquer vestígio de fumaça ou fogo tem que ser apagado com água, explicou Yakunã Ikpeng.
“As novas gerações não veem mais as florestas que os avós viram”, lamenta Katia Ono, do ISA.
Os indígenas sempre tiveram a tranquilidade de ter sua alimentação garantida pela terra. A lista das plantas cultivadas é enorme: dezenas de espécies de mandioca, amendoim, banana, mamão, batata, cará, milho, algodão…
“Os Ikpeng sempre foram povos agricultores. Com suas roças, eles sempre tiveram acesso a um alimento mais barato e de melhor qualidade nutricional. Mas com estas transformações locais, intensificadas pelo clima mais seco que passou a predominar, esses sistemas estão em risco”, diz Marcus Schmidt.
Todavia, com o clima mais seco na Amazônia, hoje há preocupação se a terra conseguirá produzir ou não. “Até agora só tivemos quatro meses de chuva este ano. E isso não é o suficiente para plantar. No caso da batata-doce e do amendoim, a raiz logo seca. E a banana não vinga bem”, conta o cacique da aldeia Arayo.
As mudanças provocadas no clima pelos homens da cidade grande estão obrigando os povos indígenas a se adaptar a novos tempos, a uma floresta menos úmida, muito diferente daquela com que conviveram seus antepassados.
“É preciso estudar a natureza de novo. E a base desse conhecimento continua dependendo do relacionamento entre as diferentes gerações. Parte do nosso esforço é também fazer com que isso aconteça”, revela a articuladora do ISA.
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