Vice-presidente do IPCC comenta os dados do último relatório do painel, que relaciona vulnerabilidade climática a desigualdades de gênero, raça e classe, e a situação do Brasil
Por Anna Beatriz Anjos colaboraram Matheus Santino e Raphaela Ribeiro em Agência Pública – O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), divulgado no fim de fevereiro, traz uma constatação alarmante: praticamente metade da população mundial – de 3,3 bilhões a 3,6 bilhões de pessoas – vive em regiões ou contextos “altamente vulneráveis” aos impactos da transformação do clima.
Segundo os 270 autores do estudo, baseado na revisão de trabalhos científicos realizados em todo o planeta, o Brasil está totalmente inserido nessa realidade: assim como outras regiões da América Latina, Ásia, África, pequenos Estados insulares em desenvolvimento e Ártico, é um dos “hotspots globais de alta vulnerabilidade humana”. O sumário para formuladores de políticas públicas, uma versão resumida do relatório, indica que o risco é maior em áreas pobres, com desafios de governança e acesso limitado a serviços e recursos básicos, conflitos violentos e modos de vida sensíveis ao clima. A vulnerabilidade se agrava ainda mais, de acordo com o texto, sob influência das desigualdades de gênero, raça, renda e suas intersecções, o que atinge sobretudo populações indígenas e comunidades locais ou tradicionais.
“O risco climático não é somente uma questão das condições climáticas que estão mudando”, explica à Agência Pública a brasileira Thelma Krug, vice-presidente do IPCC e pesquisadora aposentada do Inpe. “Quando se junta a mudança do clima a questões socioecológicas, aí você tem um nível generalizado de consequências.”
Embora, para Krug, o novo documento revele que “as coisas estão piores do que imaginávamos” ao projetar impactos irreversíveis para diferentes cenários de aumento da temperatura média do planeta – incluindo a elevação de 1,5˚C, colocada como teto pelo Acordo de Paris –, ele “também traz um espaço de soluções”. “A adaptação é uma delas: é algo que já está sendo implementado em vários lugares”, cita. Ações de adaptação são fundamentais em um mundo onde, de 2010 a 2020, a mortalidade causada por enchentes, secas e tempestades foi 15 vezes superior em regiões mais vulneráveis do que nas menos vulneráveis, conforme aponta o IPCC.
Além disso, a pesquisadora afirma que, apesar de crucial, a adaptação tem limites e precisa vir acompanhada de medidas de mitigação das mudanças climáticas. “Esse relatório diz que ainda temos tempo, mas ele só vai existir se houver grandes, sustentadas, profundas e rápidas reduções de emissões”, destaca.
O relatório é a contribuição do grupo de trabalho 2 do IPCC – que estuda impactos, adaptação e vulnerabilidade às mudanças climáticas – ao sexto Relatório de Avaliação do painel (AR6), cuja primeira parte foi publicada em agosto do ano passado.
O trabalho para elaboração do relatório é extenso, fruto de anos de revisão de pesquisas científicas realizadas em diversos lugares do mundo. Para você, enquanto vice-presidente do IPCC, quais são os principais recados trazidos por ele?
As coisas estão piores do que imaginávamos, piores do que foi avaliado no relatório anterior do IPCC, de 2014 [quinto relatório de avaliação – AR5]. Outra coisa é a projeção de que, além de 1,5˚C [de aumento de temperatura], realmente os riscos de impactos vão ficar muito grandes. O risco climático não é somente uma questão das condições climáticas que estão mudando, mas uma combinação de condições socioecológicas. Quando se junta a mudança do clima a questões socioecológicas, aí você tem um nível generalizado de consequências, de reversibilidade, da própria capacidade dos sistemas poderem se adaptar.
Embora o termo “injustiça climática” não conste no sumário para formuladores de políticas públicas, o documento diz com todas as letras quais são os grupos e regiões mais vulneráveis aos impactos das mudanças do clima: as populações do Sul Global, onde há pobreza e acesso limitado a serviços e recursos básicos, e cuja vulnerabilidade é agravada pela desigualdade e marginalização relacionadas a gênero, etnicidade e baixa renda, especialmente para populações indígenas e comunidades locais/tradicionais. Qual a importância dessas constatações terem sido incluídas de maneira incisiva no sumário?
O IPCC indica quais são as regiões mais vulneráveis, e a América Central e do Sul estão lá, junto da África, Ásia, pequenas ilhas do Pacífico e Ártico. É claro que os impactos não se distribuem de forma igual, a gente sabe que a região mais ao norte da América do Sul vai ter um aumento de temperatura maior do que o sul. Até porque a região do Chile, que depende de água dos Andes e do degelo da neve para ter água para a agricultura, poderá ficar muito comprometida, pois não vai ter mais neve. Essa parte de escassez de água, para a nossa região e particularmente para o Nordeste brasileiro, é singularizada. Por conta disso e das altas temperaturas, é uma região onde a migração ficou indicada como uma possibilidade, porque meios de subsistência não vão mais ser sustentados, não tem condições, não tem água, as sementes não são resilientes ao aumento da temperatura.
No Brasil, o senso comum ainda guarda a ideia de que os efeitos das mudanças climáticas são uma realidade distante de nós, atingindo apenas as pequenas ilhas do Pacífico, por exemplo, que correm o risco de desaparecer pelo aumento do nível oceânico. Qual a importância do relatório ter indicado o nosso país como região vulnerável aos impactos do aquecimento global?
Em nossa região já temos observado impactos que estão acontecendo por causa da mudança do clima. No Centro-Oeste do Brasil, há algumas particularidades para o agribusiness por causa da escassez de água e do aumento de temperatura. Na região do semiárido, tem projeção de impactos altos para a produção de alimentos, para as cidades e suas infraestruturas e também para a saúde. Apesar de identificar um aumento de temperatura acima de 1,5˚C e potenciais impactos que vão apresentando riscos mais altos à medida que o aquecimento vai subindo, o relatório também traz um espaço de soluções. A adaptação é uma delas: é algo que já está sendo implementado em vários lugares. O difícil é que, em adaptação, não se pode olhar só para o curto prazo, porque pode não ser suficiente. Pega, por exemplo, a elevação do nível do mar: se você colocar ali barreiras de engenharia para conter o avanço do oceano, não sabe exatamente o quanto ele realmente vai subir – no Chile, por exemplo, tem tido ondas muito altas durante parte do ano. Então, como é que você adapta essas coisas para minimizar o impacto nas zonas costeiras? Esse relatório diz que ainda temos tempo, mas ele só vai existir se houver grandes, sustentadas, profundas e rápidas reduções de emissões.
O que significa “desenvolvimento resiliente ao clima”, um dos assuntos principais do relatório?
Esse desenvolvimento resiliente olha de uma forma holística para mitigação, adaptação integrada e desenvolvimento sustentável, e com isso também lança um olhar para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [da ONU]. Mas há muitas condicionantes para isso; uma das mais interessantes, que vem sendo ressaltada pelo IPCC faz tempo, é a questão da governança inclusiva. Os governos não a fazem. Tem governos que gostam de fazer consulta com pesquisadores, de ouvir antes de traçar suas políticas públicas. Mas isso tem dois lados: você às vezes ouve só quem quer ouvir e deixa de ouvir quem poderia ter outras ideias não necessariamente concordantes. Você também não ouve quem será mais afetado por aquele risco. Não ouve os povos indígenas, cujo conhecimento teve participação grande neste relatório, mais do que em qualquer outro. Aumentou a evidência [em relação ao] conhecimento dos povos indígenas e comunidades locais, e o relatório mostra também a experiência que eles têm na implantação de algumas ações de adaptação – são basicamente os povos mais vulneráveis que a gente tem. Digo também que é preciso trabalhar em cima de política pública sem chamar o setor privado, que pode fazer parcerias público-privadas importantes, trabalhar na linha de inovação e com os institutos de pesquisa, para saber onde, por exemplo, se deve fazer reflorestamentos ou agroflorestas, ou ainda que tipo de plantio você vai fazer em determinada área e como. Os governos normalmente não fazem isso de maneira ampla e bem discutida. O relatório traz a visão de que só se consegue chegar nesse desenvolvimento resiliente ao clima se houver o olhar de que o engajamento das pessoas é importante para que se possa atingir melhor os objetivos tanto de mitigação quanto de adaptação [às mudanças climáticas].
O relatório elenca problemas das políticas de adaptação às mudanças climáticas em todo mundo – por exemplo, o fato de serem realizadas de forma fragmentada, desigual e em pequena escala. Enquanto país diverso e de dimensões continentais, o Brasil apresenta diferentes contextos de adaptação. Mas, de forma geral, como você avalia os esforços dos governos das três esferas nesse sentido?
Em algumas coisas talvez até tenha avançado, mas em outras não. Esse mau planejamento urbano é uma questão que não podia acontecer. Você tem toda uma política de zoneamento que não permite esse tipo de ocupação irregular, e o relatório fala um pouco sobre isso. Tem a questão da corrupção, das instituições e governos fracos e que na verdade impedem que possa haver adaptação. Já passamos do ponto de adaptação. Nessas ocupações irregulares, quando houver várias tempestades – a expectativa é de que sejam muito mais frequentes e intensas –, é como se [o desastre] já tivesse sido escrito. Já tivemos [desastres em Petrópolis] no passado, em 2011, tivemos agora e é só esperar, porque só vai ficar pior. À medida que o aquecimento vai ficando maior, esses eventos extremos vão ser maiores também em intensidade e duração. Muita gente fala ‘ah, mas esses eventos já aconteciam, é natural que aconteçam’. De fato, uma parte desses eventos se deve à variabilidade climática, mas hoje já se consegue atribuir parte do que está acontecendo à mudança do clima propriamente dita, à contribuição humana. Você tem grande confiança para ondas de calor, menos confiança para a parte de inundações ou chuvas fortes [o IPCC atribui intervalos de confiança no entendimento científico de determinadas questões, que vão de “muito alta confiança” a “muito baixa confiança”]. Mas, de qualquer forma, você já tem o IPCC identificando a digital humana em vários dos impactos observados e na projeção dos riscos futuros.
O sumário também descreve medidas de “má adaptação”. O que isso significa e quais são os seus riscos? Poderia citar alguns exemplos de má adaptação no Brasil?
O Brasil é um país diverso. A gente tem um plano de adaptação, mas pouca implementação. Uma má adaptação é justamente aquela em que você tem consequências não intencionais, que pode se refletir até em maiores emissões de gases de efeito estufa, por exemplo. Muitos países já estão se adaptando à elevação do nível do oceano, é inevitável, porque já estão sendo tomados pelo mar. Quando fazem essa adaptação eles não necessariamente vão conseguir resistir ao aumento do mar. Porque você só está olhando em curto prazo e não está olhando o cenário de quanto que aquilo vai poder subir e com qual rapidez. Esse é o problema, a adaptação sempre foi mais difícil por conta disso. Ter essa projeção de quão rápido você vai precisar de uma adaptação maior do que aquela que você tem ou como fazer uma adaptação que já esteja olhando para o futuro. Então a má adaptação pode ser algo que você gasta muito para fazer, mas no final das contas não serve para os propósitos para que ela foi feita. Não resiste a essas mudanças que estão sendo muito rápidas.
Dentro do capítulo da América do Sul e da América Central, você tem sim indicações de que os governos já fizeram muita coisa. Não é só no Brasil. Na verdade, nós não estamos estagnados no tempo. O próprio setor privado está preocupado. A Embrapa já está trabalhando no caso do Brasil em sementes que são mais resilientes ao clima, em uma alimentação do gado que possa reduzir as emissões de metano. São todas medidas de adaptação que já estão sendo pesquisadas, vamos assim dizer. Mas tem poucas implementadas com a profundidade com que talvez já mereçam serem implementadas.
Não é um processo muito fácil. Como é que você pega, por exemplo, esses cultivos com calendários muito fixos como os da região Centro-Oeste e muda tudo isso? Quando é que isso vai ter que ser feito para você não comprometer a safra toda? A adaptação tem isso. O relatório reforça muito a questão da parceria da natureza com o ser humano. Ele vê a natureza trabalhando para aumentar a resiliência e reduzir a vulnerabilidade dos sistemas, e isso vale muito para a questão da Amazônia, por exemplo.
A Amazônia é considerada uma região de muito alto risco em tudo. Altas temperaturas, a questão do desmatamento se unindo com todos esses extremos de calor, de secas etc. Essa região já foi muito afetada por secas sem precedentes e temperaturas muito altas. E tem uma questão também, que julguei importante nesse relatório e que não tem sido muito difundida, que fala que a pandemia do covid-19 alertou muito sobre a necessidade de se preservar a floresta tropical como forma de prevenir esse transbordamentos de vírus, né? Que é sair da vida selvagem e ir para os humanos. Também é uma oportunidade para se pensar numa adaptação baseada em ecossistemas ou coisas do gênero. Essa questão é particularmente importante porque o pessoal fala muito do desmatamento, mas não está olhando o quanto que você está deslocando da biodiversidade e o quanto que esse desvio pode estar acarretando e trazendo vírus para os humanos ou próximo aos humanos, que podem causar realmente uma futura pandemia.
É mais ou menos como se o deslocamento de espécies, por exemplo, fosse justamente para fugir e escapar de desmatamento, de incêndios ou mesmo das altas temperaturas? O relatório também já aponta os efeitos na biodiversidade, tem várias espécies que já estão migrando. Como isso pode, inclusive, desencadear o surgimento de novos patógenos que atinjam os seres humanos?
Sem dúvida, tem espécies que não vão se adaptar. Você já teve um caso concreto de um mamífero que extinguiu-se por conta da mudança do clima, na Austrália. Aconteceu uma inundação muito grande, caracterizada como uma mudança do clima de natureza humana, que dizimou essa espécie de rato. Então nós estamos falando dessa ameaça da biodiversidade. O relatório dá muita ênfase à biodiversidade para trazer essa questão humana e da natureza próximas uma da outra e fortalecendo-se simultaneamente.
Com 1,5°C de aquecimento você tem uma perda de diversidade grande. Mas a diferença entre a perda da biodiversidade a 1,5 °C e a 3 °C é muito maior. Com 3°C de aquecimento, por exemplo, você tem um risco de extinção de áreas de biodiversidade que são hotspot mesmo, áreas específicas de alta biodiversidade. A relação [de perda de biodiversidade] é de praticamente 10 vezes mais com aquecimento de 3°C do que com 1,5°C. No caso do Brasil, na região Amazônica, você poderia perder mais de 50% da biodiversidade com esses 3°C de aquecimento.
O Plano Nacional de Adaptação, instituído em maio de 2016, é satisfatório? O problema em relação a ele é a implementação, mais do que falhas de elaboração?
O que eu posso dizer para você é que esses planos têm que ser vistos amiúde por conta das rápidas mudanças que estão ocorrendo. Ou seja, a taxa de mudança que você está tendo em temperatura, elevação do nível do mar, isso está acontecendo tão rápido desde 1950, que isso tem que ter reavaliações recorrentes. Esses planos têm que ser dinâmicos, até porque a gente tem que se adaptar a novas realidades que estão surgindo.
Então possivelmente um plano que já trabalha em cima de cenários, é um plano interessante porque ele já estaria potencialmente antecipando e dando possíveis probabilidades de que esses cenários possam vir a ocorrer. Um deles a gente já falou que é esse da elevação do nível do mar, que está caracterizado no relatório. É uma área perto do nordeste brasileiro, que vai ser submetida a riscos da elevação do nível do mar. Esses locais particularmente já tem que começar a pensar no que eles vão fazer. Em particular, é preciso um planejamento urbano que evite o estabelecimento de assentamentos nessas áreas. Eles podem não estar em áreas que deslizam [como aconteceu no Rio], mas podem estar em áreas que vão ser tomadas pelo mar. Essas coisas são interessantes de adaptar.
Também tem a questão das queimadas. A Amazônia está sendo indicada como uma das áreas que vai ser a mais afetada por queimadas meteorológicas no século 21, que é uma combinação de períodos de seca grandes e contínuos juntamente com temperaturas muito altas. Então, na verdade, você tem o que a gente está chamando de múltiplos eventos extremos, que estão acontecendo ao mesmo tempo. Aí aumenta o risco, é mais difícil você fazer um gerenciamento. Na hora que você junta calor e seca, como no Nordeste, por exemplo, você vai ver que o pessoal que tá trabalhando na terra, na agricultura, vai ter um estresse de temperatura. Eles estão trabalhando fora, estão se expondo a esse calor que já diminui a produtividade devido a esse estresse térmico. Isso vai reduzir o rendimento, vai reduzir a renda familiar, vai aumentar o preço dos alimentos tanto local quanto globalmente. Você vê que é uma coisa em cadeia, eventos extremos acontecendo ao mesmo tempo.
O relatório aponta a necessidade dos planos de adaptação conjugarem saberes culturais locais e de povos indígenas e tradicionais ao conhecimento científico. Por que é importante levar em consideração os saberes dessas populações, historicamente marginalizadas e que levaram tanto tempo para atrair atenção?
Nos relatórios anteriores do IPCC, se menciona a importância dos povos indígenas, das comunidades locais, mas nunca na extensão em que estão sendo tratados neste relatório. Eles são grandes observadores, né? Até porque estão ali, no seu dia a dia, plantando, cultivando e percebendo rapidamente as mudanças que estão acontecendo. E o IPCC depende de publicações científicas, então ele tem que ter esse amparo. Felizmente nós estamos tendo mais publicações que estão vindo das comunidades indígenas. Não só na parte de evitamento da evidência, mas também na parte de como é que eles estão se adaptando. Isso é importante porque isso pode servir de exemplo de coisas práticas que são observadas e que podem ser implementadas.
O relatório deixa muito claro que ninguém fica de fora dessa equação. E dentro da construção de políticas públicas, você não pode deixar para fora os povos mais vulneráveis, que são os povos indígenas e as comunidades locais, aqueles que são menos favorecidos, aqueles que têm menos condição de se adaptar, que depende do poder público para isso, não tem saneamento, não tem água potável, mal tem condições mínimas de habitação. Você não pode deixar de fora esses que estão justamente vivendo toda essa desigualdade. Você não pode olhar para a cidade só, fazer um parquinho aqui, fazer mais uma lagoinha ali, esses problemas têm que ser tratados de uma maneira holística. Já te antecipo que no próximo ciclo, que começa em 2023, já foi decidido pelos governos que será feito um relatório especial sobre cuidados e mudança do clima.
Os debates de raça e classe precisam pautar as discussões sobre cidades sustentáveis…
Exatamente. É difícil a gente falar sempre aquele jargão de “reduzir as desigualdades”. Como fazer isso, como fazer chegar a todos a comunicação do que está acontecendo com o clima? O IPCC não tem essa capacidade de fazer a comunicação ampla que esse tema merece, então realmente a gente depende dos jornalistas, a gente depende da mídia, a gente depende de instituições que fazem eventos. Principalmente pra gente levar realmente a mensagem e fazer com que — e eu acredito que isso seja capaz – haja realmente uma cobrança em cima dos governos para que, eles tendo o conhecimento científico do que pode acontecer com eles no futuro, possam exigir dos governos uma atenção melhor. Não só para habitação, mas saneamento etc. É muito complicado, mas tem que começar de algum lugar. Esse pessoal não pode ficar de fora, de fato não tem condições, eles vão sofrer muito mais, imagine um local sem saneamento com temperaturas altíssimas, com enchentes…vai ser um horror. E já está acontecendo.
O relatório faz referência a pesquisas mostrando que a produção de arroz pode cair 6% se as emissões de gases de efeito estufa continuarem altas ou 3% com os cortes rápidos; a produção de trigo pode cair 25% com altas emissões ou 5% ainda com cortes rápidos; e a de milho, 10% com altas emissões ou 6% com cortes rápidos – estes são apenas alguns dados em relação a esse assunto. O agronegócio brasileiro tem parcelas mais conscientes em relação à crise climática, mas por que, na sua opinião, boa parte dele ainda não entendeu que a luta para mitigar e se adaptar às mudanças do clima é uma questão de sobrevivência para o seu próprio negócio?
Eles entendem… Não falta comunicação com esse setor. E não são somente os relatórios do IPCC que estão indicando, através dos seus modelos climáticos, a vulnerabilidade dessa área para questões de mudanças no regime de precipitação e altas temperaturas. A questão é quando eles vão se adaptar. Eles já devem estar pensando se existiria, por exemplo, um deslocamento da região de produção para outros lugares que serão mais favoráveis, mais ao sul do Brasil, talvez onde o calor não seja tão alto, como a gente está prevendo aí na região mais tropical da América do Sul. Então não digo para você que eles não estão pensando nisso. Estão, sim. Agora quando é que vão implementar, eu não sei. Mas eles têm conhecimento, sim, dos potenciais riscos de impactos na produção agrícola brasileira.
Mas qual seria o problema? Seria uma questão de negacionismo climático?
Não, não. É “quando é que eu vou precisar fazer isso?”. Ou seja, ainda está conseguindo ter uma safra boa, ainda está conseguindo produzir, ainda não sentiu o impacto direto ou pelo menos entendeu que o que está acontecendo tem uma digital de mudança do clima de natureza antrópica, entendeu? Conforme você vai vendo os eventos extremos, as mudanças acontecendo e de forma muito rápida, eu tenho certeza que esse setor já está se preparando, nem que seja nos seus escritórios, em institutos de pesquisa, que já estão potencialmente desenvolvendo alternativas para diferentes cenários.
Pode ser, então, a insistência numa visão de curto prazo? Você mencionou que institutos de pesquisa como a Embrapa estão atentos aos impactos da mudança climática sobre a agricultura e que há muita evidência científica nesse sentido. Mas existe uma parcela do agronegócio que segue desmatando e apoiando a grilagem de terras, por exemplo, o que tem relação muito próxima com as emissões de gases de efeito estufa e o aquecimento global. Por que o setor ainda não atua como bloco contra esse problema?
Eu não comento muito essa realidade, mas a mensagem que você falou já é bem clara, né? E acrescento que, se não houver profundas reduções de emissões, todos os modelos climáticos estão projetando um aumento médio de 4° C nas temperaturas máximas, isso até 2050, e também uma redução de 30% de chuva. Às vezes é muito isso, “ah, mas é só 2050”, só que 2050 tá aí na esquina. São várias coisas. Primeiro: o mundo vai conseguir limitar o aquecimento a 1,5° C? Essa é a questão número 1. Se limitar a 1,5 °C, as coisas vão estar tão críticas a ponto de precisar fazer adaptações profundas já? Então, você tem uma série de incógnitas que não existem para mitigação, sobre o ponto de vista de que a mitigação, se bem implementada, se as ações e medidas foram bem planejadas, você tem uma certeza maior do que vai acontecer. Já a adaptação é mais complicada por natureza, por conta dessas transformações. Você tem medidas adaptativas transformadoras que saem do que você tem feito e partem de uma coisa bem mais radical.
Mas a agricultura é um ponto que, para a América Central e do Sul, é bastante crítico. Até o relatório no capítulo 12 fala que o desafio para essa região é ter habilidade de alimentar e nutrir a sua própria população. Se a gente olhar hoje, vários desses países estão entre os maiores exportadores [de alimentos] – o Brasil está nesse grupo no milho, na soja, no café, na carne, sempre praticamente entre os 10 ou 5 maiores exportadores. Então, de fato, para o Brasil, essa questão da agricultura merece atenção especial. E essa atenção que eu falo é justamente ter essas parcerias com os institutos de pesquisa, com o pessoal que tem feito modelagem e podem fazer modelagens mais específicas para poder ajudar a prever os riscos com uma resolução espacial mais refinada, olhando locais mais específicos.
A gente começou a entrevista falando de justiça e injustiça climática. Embora o relatório não traga o termo injustiça climática, o texto diz com todas as letras quem são os mais atingidos, quem são os mais vulneráveis e são justamente as populações, e até os países que menos contribuem com o aquecimento global. Queria entender como esses relatórios vão influenciar também o posicionamento das partes na COP, que vem aí no final do ano, que vai ser num país do Sul Global africano e vai trazer muito forte esse debate sobre justiça climática. Você acha que esse relatório vai ter impacto sobre essas discussões, até sobre a atuação das autoridades?
Não comento a parte política. Mas o que a gente sempre diz é que o papel do IPCC é produzir ciência com evidência e com grau de confiança alto. É claro que você espera que, como os governos participam linha a linha na aprovação do sumário, que é sintético, mas já traz informações suficientes para a ação, ele já seja suficientemente bem embasado para gerar esse tipo de ação. O que eu imagino também, não como IPCC, mas como Thelma, é que os países têm linhas de financiamento climático, que eles fazem com países em desenvolvimento. A maior parte dos investimentos em financiamento climáticos tem sido feito para mitigação, então com esse relatório é possível que esses investimentos passarão a ser mais canalizados para adaptação, de forma que você possa atingir esse balanço entre adaptação e mitigação. E isso sim, isso eu vejo acontecendo e eu acho que até mais rápido isso acontecer do que uma modificação mais em nível de uma convenção, que requer tantos países concordando por consenso.
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