Proibida no Brasil, prática tem dados subdimensionados e está presente inclusive no mundo virtual
Por Ana Paula Orlandi em Pesquisa Fapesp | “Muitos dos meus alunos não têm mais impressão digital porque começaram a trabalhar desde cedo na produção de semijoias. E isso é descoberto no momento da emissão do documento de identidade.” O relato de uma professora da rede pública de Limeira (SP) foi suficiente para que Sandra Gemma, da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), começasse a pesquisar o processo de produção de semijoias e bijuterias em Limeira, município paulista conhecido como a “capital brasileira da joia folheada”. “Ao mesmo tempo que o setor gera ganhos econômicos e empregos para a cidade, ele é marcado por problemas sérios como o trabalho infantil, além de outras externalidades negativas como as de caráter ambiental”, conta Gemma.
Crianças com menos de 14 anos são proibidas de trabalhar, segundo a legislação brasileira. A partir dessa idade podem atuar como aprendizes, desde que a função seja desenvolvida com supervisão, sem exposição a riscos e insalubridade e não atrapalhe seu desenvolvimento físico, psíquico ou intelectual. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2019 apontou que 1,8 milhão de crianças e adolescentes trabalhava no Brasil – 21% do total tinha entre 5 e 13 anos de idade. “Há muita subnotificação e esses números devem ser maiores, sobretudo a partir da pandemia de Covid-19, que aprofundou as desigualdades sociais no país”, afirma Zéu Palmeira Sobrinho, juiz do trabalho e professor do curso de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
No caso de Limeira, há um elemento adicional: o trabalho em casa. “Com a terceirização de alguns processos produtivos, as etapas de montagem, soldagem e cravação de peças, por exemplo, foram transferidas para as residências dos trabalhadores, em condições improvisadas”, conta Gemma. “As crianças acabam sendo incluídas na produção para aumentar a renda familiar e, entre outras consequências, perdem as digitais por causa do uso de produtos químicos e do atrito dos dedos com as peças.”
Os estudos da especialista da Unicamp se estenderam por uma década, a partir de 2009, e renderam um livro lançado no ano passado. Em 2016, Gemma e as pesquisadoras Marcia Cristina da Silva Vendramini e Andreia Silva da Mata aplicaram questionários em nove escolas públicas de Limeira. Do total de 8 mil estudantes de 6 a 18 anos matriculados nessas instituições de ensino, 741 obtiveram autorização dos responsáveis para responder à enquete. O levantamento constatou que 213 dos 569 participantes com idade entre 7 e 13 anos, ou 37% deles, precisavam trabalhar para ajudar seus familiares – desses, 28% (ou 51 deles) estavam envolvidos na produção de semijoias e bijuterias. Outros faziam trabalhos de manicure, coleta de material reciclável ou atividades na construção civil. “As crianças relataram cumprir entre duas e mais de oito horas diárias de trabalho”, prossegue Gemma. Um detalhe chamou a atenção das pesquisadoras: do total de 741 entrevistados, 235 estudantes responderam que irmãos menores de 14 anos trabalhavam dentro de casa. “Isso indica que o número de crianças que exercem atividade laboral em idade não prevista em lei pode ser bem maior em Limeira”, considera Gemma.
O Brasil é um dos poucos países em que existem dados realistas de trabalho infantil
Para quem perguntar?
“A incerteza em relação aos números de trabalho infantil prejudica a formulação e o direcionamento de políticas públicas”, diz o economista paulista Guilherme Lichand, da Universidade de Zurique, na Suíça. Ao lado da psicóloga norte-americana Sharon Wolf, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, ele realizou um estudo na Costa do Marfim que, com Gana, responde por 50% da produção mundial de cacau. Estima-se que nos dois países africanos 1,6 milhão de crianças trabalhe nas plantações desse fruto. A partir de dados coletados em 2018 e 2019, os dois pesquisadores compararam o relato de crianças e de seus responsáveis com as conclusões de uma certificadora que utiliza imagens de satélite para verificar a existência de trabalho infantil em plantações na Costa do Marfim.
Em artigo publicado neste ano no repositório de preprints SSRN, os pesquisadores mostram que mais de 60% dos pais omitiram o fato de seus filhos trabalharem. De acordo com o Lichand, entre as possíveis causas estariam o medo de sanções, como a perda da guarda das crianças ou o temor de redução da renda, caso a empresa fosse autuada por órgãos de fiscalização do país. “Os dados oficiais divulgados por instituições como Organização Internacional do Trabalho, Banco Mundial e Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] são obtidos exclusivamente em entrevistas com os responsáveis. Mas, como revela nosso estudo, os relatos das crianças são mais precisos”, diz Lichand. “Ou seja, os números globais de trabalho infantil estão provavelmente subestimados.”
A partir das entrevistas na Costa do Marfim, os pesquisadores desenvolveram um modelo estatístico. Para averiguar a situação no mundo, testaram-no em dados de 97 países. Depois compararam os resultados com os Indicadores de Desenvolvimento Mundial (WDI), divulgados pelo Banco Mundial em 2015. A simulação revelou que, naquele ano, o trabalho infantil pode ter afetado 373 milhões de crianças entre 7 e 14 anos no planeta. Número quase três vezes maior do que a estimativa do WDI, de cerca de 136 milhões de crianças com a mesma faixa etária naquela situação.
Um dos países com maior discrepância entre os dados oficiais e a incidência determinada pelo modelo foi a Índia. Ali, a presença de trabalho infantil saltou de 1,7%, segundo o WDI, para 36,3%, conforme a estimativa dos pesquisadores. No Brasil, o universo previsto é sete vezes maior do que o estipulado pelo WDI. Em vez de 2,5% de trabalhadores entre 7 e 14 anos, como sugere a estatística do Banco Mundial, seriam 19,15%. Ou seja, cerca de 5,6 milhões de crianças e adolescentes trabalhavam no país em 2015.Mariana Zanetti
Os números referentes ao Brasil, obtidos pela simulação, foram comparados aos registrados no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) com estudantes do 2º, 5º e 9º anos do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio. “Graças ao Saeb, o Brasil é um dos poucos lugares do mundo em que existem dados de trabalho infantil, com informações sobre emprego e uso do tempo, reportados diretamente pelas crianças. Em 2019, 15% dos alunos de 5ª série relataram trabalhar fora de casa. Se adicionarmos os 2% de crianças de 6 a 17 anos que não estavam matriculadas esse número chegaria a 17%, muito mais próximo da nossa estimativa”, explica Lichand.
Face perversa
O trabalho doméstico realizado pela criança dentro da própria casa constitui um dos principais pontos de subnotificação, afirma a pedagoga Laura Souza Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não me refiro ao trabalho como princípio educativo, em que a criança desenvolve algumas tarefas de acordo com sua idade, como lavar louça ou estender a cama, tarefas que devem ser incentivadas. Refiro-me a jornadas exaustivas, cumpridas em geral por meninas, para que os pais possam trabalhar fora de casa. É a atividade que inclui, por exemplo, cuidar dos irmãos menores e não aparece nas estatísticas porque costuma ser definida como ‘ajuda’”, observa Fonseca, há três décadas investigando o tema.
De acordo com a especialista, essa situação reflete a precariedade das condições de vida das famílias brasileiras em regiões periféricas, sobretudo em grandes cidades. “Não há creches em número suficiente, por exemplo. O resultado é que a criança mais velha acaba assumindo a função de um adulto. Isso, em geral, traz uma série de implicações para a escolaridade e repercute na inserção posterior desses jovens no mercado de trabalho, reforçando o ciclo de pobreza.” Com ela concorda Rosana Baeninger, professora aposentada do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo), da mesma instituição. “O trabalho infantil expõe a face mais perversa e cruel das desigualdades sociais do nosso país”, constata.
Baeninger é uma das coordenadoras do atlas sobre trabalho infantil lançado no ano passado pelo Nepo e Ministério Público do Trabalho (MPT). Com a publicação, explica a pesquisadora, as duas instituições pretendem traçar uma linha do tempo do trabalho infantil neste século utilizando dados nacionais, do estado de São Paulo e dos municípios de Sorocaba e Campinas, além da Região Metropolitana da capital paulista. Os números dessa primeira iniciativa abrangem a primeira década. “Entre 2000 e 2010, a quantidade de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no Brasil caiu 13% em razão de dois fatores: o aumento da fiscalização, sobretudo no meio rural, e a queda da taxa de fecundidade”, informa Baeninger. “Por outro lado, cresceu o número de crianças negras, pardas e indígenas trabalhando nas regiões Norte, Sudeste, Sul e Centro-Oeste do país.” Segundo a Pnad 2019, 66% dos trabalhadores infantis no país são pretos ou pardos.
No início do século XX, crianças e adolescentes ocupavam quase 40% da mão de obra fabril em São Paulo
O atlas também mostra que o trabalho infantil para o autoconsumo chegou quase a dobrar naquele período, passando de 238 mil crianças, em 2000, para 458 mil, em 2010. “Autoconsumo significa que as crianças trabalhavam em plantação, criação de animais ou pesca cuja produção não seria vendida, mas usada para alimentar a própria família. Isso revela que, sem eliminar a pobreza, é praticamente impossível erradicar o trabalho infantil, em suas várias formas”, constata Baeninger.
Há evidências de trabalho infantil no Brasil desde a época da Colônia. No início do século XX, por exemplo, crianças e adolescentes ocupavam quase 40% da mão de obra fabril em São Paulo. “O trabalho infantil é naturalizado em nossa cultura e ainda hoje existe a crença de que ele seja benéfico para crianças e adolescentes, mas essa lógica parece valer apenas para os mais pobres”, observa Palmeira Sobrinho, um dos criadores do Núcleo de Estudos sobre Trabalho Infantil (Netin) da UFRN. Nascido na Paraíba, na infância ele trabalhou no comércio e como office-boy. “Muitos dos meus amigos daquela época, que também precisaram trabalhar, adoeceram porque foram submetidos a serviços pesados”, lembra.
“O trabalho infantil prejudica a saúde física e mental de crianças e adolescentes. Muitas vezes as consequências de atividade de trabalho precoce só vão aparecer mais tarde, na fase adulta”, avalia o psicólogo Valdinei Santos de Aguiar Junior, autor de livro sobre o tema em parceria com o pediatra Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos, do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Fiocruz. Segundo o pesquisador, a saúde pública pode contribuir de forma significativa no combate à exploração do trabalho infantil. “O SUS [Sistema Único de Saúde] tem grande capilaridade e desse modo potencialmente consegue alcançar inclusive crianças que não estão na escola. Em alguns casos, quando as crianças se machucam no trabalho, as famílias mascaram a situação para evitar sanções. Os profissionais da saúde precisam estar atentos para acolher as crianças e suas famílias, garantindo a proteção necessária.”
Uma das crenças que cercam o trabalho precoce é de que ele afastaria crianças e adolescentes do mundo do crime. Não é isso que mostram os dados de pesquisa em andamento na Fundação Desenvolvimento da Criança e do Adolescente (Fundac), localizada em João Pessoa (PB). Além de estudantes de graduação e pós-graduação do curso de psicologia, nos últimos cinco anos já participaram do projeto coordenado pela psicóloga Maria de Fatima Pereira Alberto, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), 20 adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas na Fundac. Com apoio de bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), eles atuaram como entrevistadores. “Dos 250 questionários aplicados e entrevistas realizadas até agora, mais de 80% dos meninos e meninas que estão cumprindo medida socioeducativa foram trabalhadores precoces”, relata Alberto, coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre o Desenvolvimento da Infância e Adolescência (Nupedia) da UFPB.Mariana Zanetti
A pesquisa gerou um livro organizado por Alberto e Rafaela Rocha da Costa, professora do curso de psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg). Segundo Alberto, 70% dos internos começaram a trabalhar entre 10 e 14 anos nas mais variadas atividades, como mecânico e entregador. “Muitos iniciam em atividades lícitas e depois migram para o tráfico de drogas, que paga melhor, embora seja uma atividade de alto risco”, relata a especialista.
Desde meados da década passada o trabalho infantil vem se intensificando no meio digital, em uma modalidade muito específica, da figura do influenciador digital mirim: crianças e adolescentes que produzem conteúdo, sobretudo para redes sociais. “O perfil social é variado. Vai de crianças de classe média baixa à alta, com prevalência de meninas”, aponta a jornalista Renata Tomaz, da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas (ECMI-FGV) e autora de O que você vai ser antes de crescer? Youtubers, infância e celebridade (Edufba, 2019), resultado de seu doutorado defendido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Pessoas com menos de 13 anos são proibidas de criar perfil e conta em algumas plataformas, mas, mesmo assim, estão lá”, observa a advogada Thais Roberta Rugolo, do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, organização voltada aos direitos infantis que produziu uma cartilha a respeito. “Quando se destacam e ganham audiência podem ser remuneradas pelas próprias plataformas ou contratadas por empresas para realização de publicidade, voltada ao público infantil na rede.” Naturalmente, são poucos os que obtêm essa visibilidade. “Uma minoria consegue ganhar dinheiro e, nesses casos, há famílias que vivem à custa dessas crianças”, relata Tomaz. “É um trabalho que exige responsabilidade, energia e tempo das crianças influenciadoras, que precisam criar e atuar nos conteúdos e interagir com seus seguidores para garantir engajamento.”
Conforme Rugolo, trata-se de uma forma de trabalho artístico, categoria que engloba ofícios como modelo e ator. “A legislação brasileira permite que crianças e adolescentes com menos de 16 anos executem essas funções desde que com autorização judicial, conhecida como alvará, em geral providenciada pelo contratante. É uma medida que garante que o Poder Judiciário poderá avaliar os impactos à criança, mas essa não é uma realidade ainda em trabalhos artísticos no mundo digital”, diz a advogada. Em 2020, a França aprovou uma lei regulando a atividade dos youtubers com menos de 16 anos. A legislação estabelece, entre outras medidas, a exigência de alvará e limitação das horas de trabalho. Também determina que receitas acima de certo valor sejam depositadas em uma conta bancária que só poderá ser movimentada após a maioridade da criança. “É uma legislação que o Brasil poderia ter como inspiração”, finaliza Rugolo.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.