Por Herton Escobar em Jornal da USP | Para aqueles que ainda têm dúvidas sobre a importância da Floresta Amazônica para o futuro da espécie humana no planeta, um novo artigo científico traz uma mensagem muito clara: “Do ponto de vista climático, a degradação generalizada da Amazônia seria uma catástrofe global irreversível”, escrevem os autores, sem meias palavras, na edição desta semana da revista Science. Segundo os pesquisadores, muito além dos impactos diretos sobre a própria floresta, ou sobre a própria região amazônica, o colapso do bioma teria o poder de desencadear alterações climáticas brutais em todo o planeta, com “consequências catastróficas para o bem-estar humano”, incluindo insegurança hídrica e alimentar, migrações em massa e instabilidade política.
O trabalho é assinado por 19 pesquisadores, de seis países, incluindo três autores da USP. Trata-se de uma revisão — ou seja, um artigo em que os autores analisam toda a literatura científica disponível para rascunhar hipóteses e derivar conclusões a respeito de um determinado tema. E as conclusões, nesse caso, são assustadoras. Segundo os cientistas, a Amazônia está muito próxima de sofrer um colapso do seu sistema hidrológico, que resultará na substituição de suas vastas florestas tropicais por uma cobertura vegetal muito mais seca, semelhante a uma savana degradada. Mesmo nas áreas que não forem desmatadas, essa degradação resultará em emissões massivas de gás carbônico para a atmosfera, que agravarão ainda mais as mudanças climáticas globais.
“As principais mensagens desta revisão são que múltiplas mudanças graves na Amazônia, impulsionadas por atividades humanas modernas, estão acontecendo rápido demais para a sobrevivência de suas espécies e ecossistemas, e que o desmatamento generalizado da Amazônia seria uma catástrofe irreversível para o sistema climático global”, escrevem os pesquisadores.
“É uma realidade triste, mas uma realidade verdadeira”, disse ao Jornal da USP o climatologista Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e autor sênior do trabalho. O artigo aparece como um dos destaques de capa da Science, ao lado de outro estudo liderado por brasileiros, que também alerta para os perigos globais da degradação florestal na Amazônia (mais detalhes abaixo).
“Acho que muita gente ainda não se deu conta do risco que estamos correndo”, disse ao Jornal da USP a professora Lúcia Lohmann, do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências (IB) da USP, que também assina a revisão. “Esta talvez seja a última década que temos para reverter esse cenário”, alerta ela.
O artigo chama atenção para o fato de que os impactos cumulativos das atividades humanas sobre a Amazônia estão erodindo o equilíbrio ecológico do bioma num ritmo muito mais acelerado do que qualquer fenômeno natural do passado, impedindo que suas espécies e seus ecossistemas tenham a possibilidade de se adaptar a essas mudanças. Mudanças que ocorriam ao longo de milhares de anos agora estão ocorrendo no prazo de décadas. “É uma transformação tão rápida que não existe nenhuma chance de o sistema se adaptar”, pontua Nobre. Os principais impactos considerados na análise incluem desmatamento, queimadas, erosão do solo, represamento de rios e o ressecamento (“aridificação”) dos ecossistemas florestais, causado pelas mudanças climáticas globais — que também são consequência da interferência humana nos sistemas naturais da Terra.
Cerca de metade da chuva que cai sobre a Amazônia é gerada pela sua própria vegetação, por meio da evapotranspiração das plantas (que “reciclam” a água da chuva e a devolvem para a atmosfera na forma de vapor). Quanto menor a cobertura vegetal, portanto, menor a quantidade de água disponível no sistema para manter o equilíbrio ecológico da floresta. Em outras palavras, à medida que o desmatamento avança pela região, a floresta vai ficando cada vez mais seca, até deixar de ser floresta. “Além de um certo limite, o desmatamento e a aridez regional ficarão presos em um ciclo vicioso, que levará a uma transformação descontrolada de exuberantes florestas tropicais em paisagens agrícolas degradadas, semelhantes a savanas”, escrevem os pesquisadores.
O estudo olha para o bioma amazônico como um todo, não apenas para a Amazônia brasileira, e tem como fonte de dados principal o Relatório de Avaliação da Amazônia, publicado em 2021 pelo Painel Científico para a Amazônia — um grupo de 240 pesquisadores, de 20 países, incluindo vários brasileiros, de instituições nacionais e estrangeiras.
O relatório destaca que 17% da cobertura florestal da Amazônia já foi desmatada e 14% dela, convertida em áreas de produção agropecuária (pastos e plantações). Ninguém sabe dizer onde fica exatamente o chamado tipping point — ou “ponto de virada”, onde o ciclo hidrológico se quebra e a conversão da floresta em savana se torna irreversível —, mas estima-se que ele esteja entre 20% e 40% de área desmatada. “O fato é que estamos muito próximos disso”, alerta Nobre. Muitos cientistas acreditam, inclusive, que essa nota de corte, por assim dizer, já tenha sido superada em algumas partes mais devastadas do bioma, como o sudeste da Amazônia brasileira, onde a floresta já emite mais carbono para a atmosfera do que é capaz de absorver. Com o avanço do desmatamento e da degradação florestal, é possível que todo o bioma passe a ser uma fonte de emissão de carbono já nos próximos anos, agravando ainda mais o aquecimento global.
Uma vez atingido esse tipping point, segundo Nobre, mais da metade da cobertura florestal da Amazônia poderá desaparecer num prazo de 30 a 50 anos, liberando bilhões de toneladas de gás carbônico para a atmosfera. A Amazônia inteira, segundo os cientistas, tem cerca de 180 bilhões de toneladas de carbono armazenadas em seus sistemas florestais (vegetação e solo), o que equivale a um quarto de todo o carbono emitido por atividades humanas no mundo desde o início da Revolução Industrial, em 1750. Se todo esse carbono amazônico fosse lançado na atmosfera agora, a temperatura média da Terra aumentaria em 0,5 grau Celsius — o que pode parecer pouco, mas, somado a outras fontes de emissão, seria mais do que suficiente para desencadear uma catástrofe climática.
Além de Nobre e Lohmann, o artigo na Science é assinado por Nathália Nascimento, pós-doutoranda do programa Biota Síntese, no IEA USP, e vários outros pesquisadores brasileiros, vinculados a instituições de pesquisa no Brasil e no exterior. O autor principal é James Albert, da Universidade da Louisiana em Lafayette, nos Estados Unidos.
O desmatamento é a forma mais grotesca e óbvia de destruição da Amazônia; mas não é a única. Tão preocupante quanto o desmatamento é a degradação florestal, que também impacta severamente a biodiversidade e pode emitir tanto carbono (ou até mais) quanto o corte raso da floresta, segundo um outro artigo de revisão, também publicado nesta edição da Science.
O termo “degradada” refere-se a áreas nas quais a estrutura e os processos ecológicos originais da floresta foram corrompidos de alguma forma, ainda que a maioria de suas árvores permaneça em pé. Por exemplo, áreas que foram afetadas por queimadas, secas extremas, corte seletivo ilegal (quando apenas árvores de maior valor comercial são derrubadas, abrindo clareiras na mata) e/ou expostas ao chamado “efeito de borda”, uma espécie de degradação que acomete florestas adjacentes a áreas desmatadas. São perturbações antrópicas (causadas pelo homem) que deixam a floresta mais seca, reduzem a quantidade de biomassa (matéria orgânica) e aumentam a mortalidade de árvores, resultando em perda de biodiversidade e maiores emissões de carbono, entre outros problemas.
O artigo faz uma ampla análise das causas e efeitos dessa degradação florestal na Amazônia, e ainda apresenta algumas projeções de como esse cenário poderá evoluir nas próximas décadas. “Esses dados já existiam na literatura científica, mas nunca tinham sido colocados juntos”, disse ao Jornal da USP o pesquisador David Lapola, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autor principal do estudo.
Os pesquisadores calculam que 38% das florestas remanescentes (não desmatadas) da Amazônia estão degradadas, quando se considera os quatro tipos de perturbação: fogo, estiagem, corte seletivo e efeito de borda. O item mais pesado — e polêmico — dessa conta é a seca. Os autores reconhecem que nem todos os eventos de seca extrema na Amazônia podem ser classificados inequivocamente como um fator de degradação antrópica, ligado ao aquecimento global (pois eles também podem ocorrer naturalmente de tempos em tempos). Quando esse fator é excluído da análise, a área total degradada cai para 5,5% do bioma amazônico. “Esperamos abrir uma boa discussão na comunidade científica a respeito disso”, afirma Lapola.
Calcular as emissões de carbono resultantes desse processo também é complicado, pois as perturbações se sobrepõem e interagem entre si no tempo e no espaço. Hectare por hectare, o desmatamento emite muito mais carbono do que a degradação, pois a perda de biomassa é muito maior. Por outro lado, como as áreas degradadas são muito grandes, o total emitido por elas acaba sendo equivalente ou até maior do que o emitido pelo desmatamento, podendo chegar a 200 milhões de toneladas de carbono por ano, segundo os pesquisadores.
A boa notícia que acompanha esses prognósticos preocupantes é que as medidas necessárias para impedir que esses cenários mais catastróficos se tornem realidade já são conhecidas. Falta implementá-las. “As políticas para evitar os piores resultados são conhecidas e devem ser implementadas imediatamente. Agora precisamos de vontade política e liderança para agir com base nessas informações”, escrevem os autores da primeira revisão.
Lohmann lembra que o Brasil já combateu o desmatamento com sucesso no passado (redução de 80% entre 2004 e 2014) e pode voltar a fazê-lo, apesar do recrudescimento das atividades ilegais verificado nos últimos quatros anos e da dificuldade na implementação de acordos internacionais. “Estou esperançosa”, diz. “Temos os dados, temos o conhecimento e sabemos o que precisa ser feito. Não podemos falhar na nossa responsabilidade.”
É um esforço que exige ações locais e internacionais. Mesmo que o Brasil obtenha sucesso em zerar o desmatamento ilegal, de nada ou muito pouco adiantará se as emissões globais de carbono (oriundas, principalmente, da queima de combustíveis fósseis) não forem urgentemente reduzidas para frear o processo de aquecimento do planeta — que também impacta diretamente a Amazônia, por exemplo, por meio do aumento da ocorrência de eventos climáticos extremos na região. Isso já está acontecendo: segundo os pesquisadores, secas e cheias extremas ocorreram em nove dos últimos 15 anos na Amazônia, comparado a apenas nove eventos desse tipo registrados em todo o século passado.
“Prevenir mais desmatamento continua sendo um objetivo fundamental para estabilizar o sistema climático, preservar a biodiversidade e garantir o desenvolvimento sustentável. O desmatamento é, em si, um dos principais impulsionadores das emissões de gases de efeito estufa e da perda de biodiversidade e um impulsionador de várias formas de degradação”, escrevem os autores da revisão sobre degradação. “Mas também está claro que as ações para evitar o desmatamento não são suficientes e devem ser apoiadas por outras intervenções.”
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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