Tubarões tornam-se raros na costa catarinense

Compartilhar

Por Gilberto Stam, da Revista Pesquisa Fapesp | Há seis anos, quando começou a mergulhar em uma reserva biológica perto de Florianópolis, o biólogo Guilherme Mayer, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), não esperava avistar muitas das espécies de tubarões que conheceu nos livros da faculdade. De fato, não viu nenhum. Grandes predadores, os peixes desse grupo têm sido dizimados há 60 anos, com uma redução populacional próxima a 90% no mundo.

Segundo Mayer, a redução das populações de tubarões poderia causar um desequilíbrio ambiental. Nesse caso, a população de peixes menores, de que se alimentam, pode crescer descontroladamente, até suas fontes de alimentos começarem a diminuir. Em consequência, populações de diversas espécies e tamanhos podem diminuir ou desaparecer. A esse risco somam-se as peculiaridades de cada espécie de predador, que dificultam a recuperação das populações. “O tubarão-mangona [Carcharias taurus] leva cerca de 15 anos para atingir a maturidade sexual e se reproduz a cada dois anos”, exemplifica.

Ocorreu também uma redução da diversidade de tubarões no litoral catarinense. Há mil anos, os povos nativos se alimentavam de pelo menos 15 espécies, das quais 4 mais vistas atualmente, de acordo com um estudo de Mayer publicado em janeiro deste ano na revista Journal of Fish Biology.

Mayer chegou a esses números analisando 1.647 dentes de tubarões e cerca de 200 vértebras, caçados por povos que viveram na região entre 1.200 e 600 anos atrás e depositados no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da UFSC. “Os nativos pescavam na época da reprodução da corvina, que atraía tubarões e golfinhos para uma baía ao norte de Santa Catarina, perto de um dos sítios arqueológicos onde os dentes foram encontrados”, conta o arqueólogo belga Simon-Pierre Gilson, da Universidade de Las Palmas, Espanha, coautor do estudo, que estava no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro quando fez esse trabalho.

Tubarão-limão, visitante das águas do sul do Brasil há mil anos. Imagem por Hannes Klostermann, disponível no Ocean Image Bank

Quase metade dos dentes era de tubarão-mangona, que chega a 3 metros (m) de comprimento, vive próximo à costa e está criticamente ameaçado de extinção, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Como a maioria dos animais era de jovens e recém-nascidos, os pesquisadores concluíram que a baía era visitada regularmente na época de acasalamento ou do parto, em geral de um a dois filhotes por vez. As águas rasas e a vegetação abundante dificultavam a entrada de predadores, e havia muitos peixes pequenos que serviam de alimento para os tubarões.

No século XVIII, de acordo com relatos de viajantes europeus, os indígenas cercavam o tubarão em águas rasas e enfiavam uma lança de madeira na boca, aberta pelo peixe ao se defender do ataque. Em um artigo de 2021 publicado na revista Journal of Archaeological Science: Reports, Gilson argumentou que esses peixes representavam mais da metade da dieta dos nativos, possivelmente porque pescar o volume equivalente em corvinas consumia mais tempo.

Os dentes de tubarões serviam como faca, ponta de flecha ou para colares, encontrados em crianças ou pessoas importantes enterradas em outro sítio arqueológico, onde é hoje a praia de Jurerê, em Florianópolis. Também foram encontradas vértebras grandes em sítios de aldeias, sinal de que os índios levavam postas de peixe para casa.

Encontrar dentes de tubarão-limão (Negaprion brevirostris) surpreendeu: como essa espécie vive atualmente apenas em ilhas oceânicas, não deveria estar tão perto do continente. “Correntes marítimas mais quentes talvez chegassem até aqui nessa época, trazendo esses peixes”, supõe o biólogo Renato Freitas, da UFSC, orientador de Mayer.

Freitas já esteve cara a cara com alguns exemplares dessa espécie quando mergulhava no Atol das Rocas, a cerca de 260 quilômetros (km) da cidade de Natal, no Rio Grande do Norte: “Uma vez, vi uma fêmea grávida de 2,5 m de comprimento e me escondi atrás de uma pedra, mas ela também me viu e começou a nadar em minha direção”. Ele tentou se acalmar lembrando que tubarões não identificam o ser humano como uma presa e geralmente só mordem o ser humano, porque esse é o meio de investigação deles, em águas turvas, quando não veem direito o invasor de seu território. Imóvel, esperou, até ver a predadora se afastar.

Os pesquisadores verificaram que os nativos apreciavam a carne do tubarão-branco (Carcharodon carcharias), espécie que chega a mais de 6 m de comprimento, vive próxima à costa, se alimenta de peixes e mamíferos marinhos, como focas, e foi vista pela última vez em Santa Catarina há cerca de 25 anos. Foi essa espécie que inspirou o filme Tubarão (1975), do cineasta norte-americano Steven Spielberg, que consolidou a má fama desses peixes.

“No Brasil, uma pessoa morreu por causa de mordidas de tubarões a cada dois anos na última década, muito menos do que as mortes causadas por raios”, pondera Mayer. Ele e Freitas procuram dimensionar o real perigo desses bichos com ações em escolas, parques e praias. Com esse propósito, neste ano publicaram o livro Desmitificando tubarões e raias de Santa Catarina. “Pessoas não estão no meu cardápio, vocês têm um gosto bem ruim”, queixa-se o personagem-tubarão do livro.

Matança em alto-mar

“Um terço das espécies de tubarões e raias está ameaçada de extinção”, reforça a bióloga Patrícia Charvet, da Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em tubarões e uma das coordenadoras do Grupo de Especialistas em Tubarões para a América do Sul da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). “No Mediterrâneo, por causa da sobrepesca, algumas espécies já atingiram a extinção comercial e metade das espécies pode desaparecer em poucos anos.”

Suas conclusões se apoiam em uma análise mundial de 1.199 espécies publicada em novembro de 2021 na revista Current Biology, de que participou. Segundo a pesquisadora, o fato de essas espécies não se adaptarem à vida em cativeiro dificulta as tentativas de recuperação populacional.

Mundialmente, cerca de 100 milhões de tubarões são capturados por ano. Da maioria (70%) se aproveitam apenas as nadadeiras, usadas principalmente na Ásia em uma sopa tradicional – cada prato custa de US$ 30 a US$ 60. Seus supostos benefícios para a saúde são questionáveis: “As barbatanas, ou nadadeiras, são feitas de pele e cartilagem, que por si só não têm sabor e têm baixo valor nutritivo”, ressalta Charvet. Os pescadores jogam os peixes de volta ao mar para deixar mais espaço no barco para os milhares de nadadeiras.

No Brasil, a pesca de algumas espécies de tubarões em risco de extinção é proibida por lei, mas o país é um dos maiores consumidores mundiais desse peixe. “Boa parte da carne é importada do Uruguai, onde se capturam tubarões que visitaram a costa brasileira, o que torna inócuas as medidas de proteção da fauna marinha”, alerta Freitas. Ele aponta outro problema: as redes e os anzóis usados no Brasil não são seletivos e espécies ameaçadas, capturadas por engano, geralmente não são devolvidas ainda vivas ao mar.

Em feiras e mercados, tubarões de qualquer tamanho e raias são vendidos com o nome de cação – os pequenos em postas, os grandes como filé –, verificaram pesquisadores da UFSC e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), como detalhado em um artigo da Aquatic Conservation publicado em maio de 2021. Segundo estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade da Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) publicado em 2018 na revista Frontiers in Genetics, quase metade (47%) das 20 espécies encontradas em mercados de cidades litorâneas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul estava criticamente ameaçada de extinção – o último grau antes do desaparecimento completo.

Mayer alerta que o consumo de carne de tubarão ou raia não é seguro, de acordo com diversos estudos no Brasil e no mundo: “Quase todos estão contaminados com metais pesados como mercúrio, chumbo e níquel”. Como não são eliminadas pelo organismo, essas substâncias se acumulam nos animais grandes que naturalmente comem uma grande quantidade de pequenos. Por viverem muito, os tubarões incorporam quantidades ainda maiores de toxinas que podem causar câncer e prejudicar o desenvolvimento neurológico de crianças.

Artigos científicos

ALMERÓN-SOUZA, F. et alMolecular identification of shark meat from local markets in southern Brazil based on DNA barcoding: Evidence for mislabeling and trade of endangered speciesFrontiers in Genetics. v. 9, n. 138. abr. 2018.
CRUZ, V. P. da et alA shot in the dark for conservation: Evidence of illegal commerce in endemic and threatened species of elasmobranch at a public fish market in southern BrazilAquatic Conservation. v. 31, n. 7, p. 1650-9.
GILSON, S. e LESSA, A. Capture, processing and utilization of sharks in archaeological context: Its importance among fisher-hunter-gatherers from southern BrazilJournal of Archaeological Science: Reports. v. 35, n. 102693. fev. 2021
MAYER, G. B. et alSouth Brazil pre-colonial sharks: Insights into biodiversity and species distributionsFish Biology. v. 100, n. 3, p. 811-9. 2022.
TALWAR, B. S. et alExtinction risk, reconstructed catches and management of chondrichthyan fishes in the Western Central Atlantic OceanFish and Fisheries. On-line. 30 abr. 2022.
DULVY, N. K. et alOverfishing drives over one-third of all sharks and rays toward a global extinction crisisCurrent Biology. v. 31, n. 21, p. 4773-87. 8 nov. 2021.

Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

Thaís Niero

Bióloga marinha formada pela Unesp e graduanda de gestão ambiental. Tentando consumir menos e melhor e agir para alcançar as mudanças que desejo ver na sociedade.

Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.

Saiba mais