ão foram poucas as vezes em que a bióloga Bruna Canal, de Foz do Iguaçu (PR), mudou de endereço nos últimos 10 anos. A pesquisadora, que trabalha na organização não governamental (ONG) Movimento Verde, passou períodos em lugares como Ubatuba (SP), Pacatuba (SE), Mata de São João (BA), Ilha da Trindade (ES) e Fernando de Noronha (PE), todos no litoral brasileiro. Para além da participação em pesquisas sobre conservação de tartarugas marinhas ameaçadas de extinção, durante o período em que se dedicou ao projeto Tamar, presente em mais de 20 municípios do país, Bruna empregou um bom tempo à tarefa de engajar comunidades em atividades de conservação ambiental. Aos poucos, aprendeu a dialogar com moradores, visitantes, empresários, gestores públicos e especialistas de áreas diferentes. “Queria entender melhor o envolvimento desses múltiplos atores com o oceano e pensar com eles como concretizar práticas ambientalmente saudáveis de acordo com a realidade de cada população.”
A experiência adquirida trabalhando com turismo e com pescadores e marisqueiras levou a bióloga a contribuir para a implementação da Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, coordenada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O objetivo é sensibilizar a população de todo o mundo sobre a importância do oceano, mobilizando diversos setores da sociedade, como universidades, governos, empresas, organizações sociais e cidadãos, em iniciativas que fortaleçam a saúde e a sustentabilidade dos mares.
De acordo com relatório publicado pela Comissão Oceanográfica Intergovernamental da Unesco, em 2019 apenas 1% dos orçamentos nacionais para pesquisas foi direcionado para estudos relacionados ao oceano. Apesar de cobrir 70% da Terra, somente 19% do fundo do mar foi mapeado e catalogado até agora – muito menos do que já se sabe, por exemplo, sobre a superfície da Lua, de Marte e de Vênus.
Ao mesmo tempo, o oceano fornece alimento e condições de vida para mais de 3 bilhões de pessoas, informa a Unesco. Ele também é responsável por aproximadamente 30 milhões de empregos diretos, gerando uma riqueza equivalente a US$ 3 trilhões por ano. “Por essas e outras, precisamos unir esforços de toda a sociedade”, afirma Bruna. “É uma oportunidade para estimularmos a coprodução do conhecimento, fortalecendo ações de adaptação e desenvolvimento por meio do diálogo entre o pensamento científico e saberes tradicionais, como aqueles acumulados ao longo de séculos por famílias de caiçaras.”
Foi com esse espírito colaborativo que se construiu o Plano Nacional de Implementação da Década do Oceano, como se convencionou chamar a iniciativa no Brasil. Coube ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) organizar um comitê de assessoramento formado por pesquisadores, gestores, membros da sociedade civil, do terceiro setor e da área de comunicação. O órgão, por sua vez, estabeleceu cinco grupos de apoio à mobilização – um para cada região do país – a fim de congregar instituições e voluntários em nível local, levando em consideração desafios regionais.
“A Década é um movimento mundial, mas que deve respeitar a diversidade cultural de cada país”, ressalta o biólogo Ronaldo Christofoletti, pesquisador do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Santos (SP), e coordenador das oficinas “O Brasil na Década do Oceano”, cujos relatórios embasam o Plano Nacional. “As demandas e os estilos de comunicação e de interação entre indivíduos e instituições variam de região para região”, comenta. “Apesar disso, chegamos a um consenso: todos os participantes reconheceram a relevância de articular diferentes vozes para identificar potenciais conflitos e divergências entre os atores envolvidos.”
A coordenação promoveu oficinas em todas as regiões do país para discutir o planejamento e definir atividades para a Década do Oceano na região. Realizados remotamente, por conta da pandemia, os encontros virtuais – no caso do Nordeste – resultaram na criação de uma rede que, até o momento, reúne 26 representantes de ONGs, instituições científicas e comunidades tradicionais. No total, 476 pessoas de 19 estados, mais o Distrito Federal, colaboraram nas oficinas on-line e ajudaram a fundamentar as bases da Década do Oceano no Brasil. O setor acadêmico concentrou a maioria dos participantes (54%). Um destaque foi o envolvimento consideravelmente maior (60%) de mulheres, em todas as regiões.
“Garantir e reforçar a equidade de gênero está no radar da Década do Oceano”, diz Bruna, que faz parte da Liga das Mulheres pelo Oceano. O movimento reúne mais de 2.300 mulheres, entre pesquisadoras, ativistas e líderes comunitárias, dedicadas a potencializar ações e ideias para enfrentar problemas como o aquecimento do oceano, a superexploração dos recursos marinhos e a poluição dos mares, especialmente por plástico e falta de saneamento. Recentemente, a bióloga deu início a um projeto batizado de Escola do Mar, que tem como público-alvo meninas do ensino médio no município baiano de Caravelas, onde ela vive hoje. “O intuito é engajar essas adolescentes em atividades e profissões relacionadas ao ecossistema marinho, promovendo cultura oceânica, conservação marinha, geração de empregos e empoderamento feminino.”
Ela conta que Caravelas é uma cidade muito pequena, com poucas oportunidades de emprego. Ao mesmo tempo, é nela que está instalado o Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, unidade de conservação que abriga uma das maiores biodiversidades do país. “Vamos realizar oficinas profissionalizantes de fotografia, mergulho, esportes náuticos e empreendedorismo, concebendo com as garotas possibilidades de atuação profissional comprometidas com a conservação marinha.”
A Década do Oceano não diz respeito exclusivamente à oceanografia, campo do conhecimento dedicado a estudar aspectos biológicos, físicos, geológicos, químicos e sociais do oceano e de zonas costeiras. A Unesco optou pelo termo “ciência oceânica”, não por mero capricho. “No contexto da Década, o oceano é considerado parte do sistema terrestre, estendendo-se da costa ao mar aberto e da superfície ao solo oceânico”, explica Christofoletti.
“A ciência oceânica, portanto, abrange disciplinas das ciências naturais e sociais, incluindo as interfaces entre ciência e políticas públicas. Por essa razão, tanto pesquisas quanto atividades de educação ambiental devem estar posicionadas em um ângulo transdisciplinar”, observa o biólogo Alexander Turra, pesquisador do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), também integrante do comitê de assessoramento da Década do Oceano no Brasil.
“Em geral, as pessoas dão mais atenção ao que as influencia diretamente no bairro, na vida cotidiana. O oceano, dado o fato de ninguém ‘morar’ nele, fica em segundo plano”, avalia Turra, que também integra a coordenação do Programa Biota FAPESP. “No entanto, não são apenas populações costeiras que afetam e são afetadas pelo oceano”, diz, enfatizando que mesmo cidades não litorâneas têm relação estreita com o mar.
“A degradação do oceano impacta até quem mora no interior”, afirma o pesquisador. Ele lembra que, por um lado, metade do oxigênio que a humanidade respira vem do oceano, ambiente que também ajuda a regular o regime de chuvas e a absorver boa parte dos gases de efeito estufa responsáveis pelo aquecimento global. “Aproximadamente 20% do Produto Interno Bruto [PIB] brasileiro vem do mar, principalmente associado a serviços relacionados ao turismo. Isso sem falar no papel do oceano na agricultura, que representa 24% do PIB e depende das chuvas que são reguladas por ele.” Por outro lado, habitantes do interior do país afetam diretamente a saúde do oceano. Uma garrafa plástica lançada em um rio em Mato Grosso ou São Paulo em algum momento pode chegar ao oceano.
As diretrizes traçadas para a Década do Oceano recomendam que a busca por soluções para problemas como a poluição dos mares por microplásticos e o branqueamento de corais, assim como conflitos que atingem comunidades de pescadores, sejam orientados por uma “ciência transformadora”, capaz de abarcar a complexidade desses processos.
“Trata-se de uma abordagem para nortear pesquisas participativas, em que cientistas envolvem moradores de determinada localidade em um projeto de investigação científica”, diz Christofoletti. Por trás dessa metodologia, predomina um conceito conhecido como “comunidade ampliada de pares”, desenvolvido nos anos 1990 por dois filósofos, o argentino Silvio Funtowicz e o norte-americano Jerome Ravetz.
Ampliar a comunidade de pares significa garantir a participação de cidadãos desde as etapas iniciais de uma pesquisa. “A finalidade é estimular não apenas cientistas a colaborar no planejamento do estudo, na definição das perguntas a serem respondidas, na execução da investigação e, se for o caso, na aplicação dos resultados”, explica Turra, que usa esse arcabouço em projetos realizados no litoral de São Paulo.
Foi o caso de um estudo realizado em 2015 em São Sebastião (SP), que buscou fornecer subsídios para uma gestão integrada com a comunidade local, visando incluir uma série de problemas socioambientais no plano de desenvolvimento da baía do Araçá. Primeiro os pesquisadores diagnosticaram de forma colaborativa os principais problemas enfrentados pela região – decorrentes da poluição dos esgotos das casas e do porto de São Sebastião – que prejudicavam muitos grupos de animais de importância ecológica ou ameaçados de extinção. Um exemplo são espécies de poliquetas, animais semelhantes a minhocas que cumprem várias funções ecológicas além de servirem como alimento para os peixes e outros invertebrados. Em paralelo, investigaram fatores físicos, químicos, geológicos e socioeconômicos que influenciavam a dinâmica do Araçá (ver Pesquisa FAPESP nº 234) – discutidos com a participação da população local para a criação de propostas de ação para combater os problemas identificados.
“Realizávamos reuniões comunitárias para fazer o diagnóstico participativo das particularidades da baía do Araçá. Com base em dados científicos e a contribuição dos moradores, elaboramos o Plano Local de Desenvolvimento Sustentável em 2016”, informa Turra, que no momento emprega a mesma metodologia participativa no Projeto Praias, financiado pela FAPESP e pela Fundação Boticário.
A ideia, diz Turra, é desenvolver uma estratégia ampla de conservação baseada em planejamento territorial, considerando diferentes usos, impactos, indicadores ecológicos e características das praias do litoral norte paulista. “Antes da pandemia, realizamos duas oficinas, uma em Ubatuba e outra em Caraguatatuba, a fim de identificar, com gestores e sociedade civil, os elementos relevantes localmente para a identificação de praias prioritárias para conservação.”
Nos encontros, batizados de “Será que vai dar praia?”, pesquisadores, gestores públicos e residentes de comunidades locais, entre eles pescadores, conversaram sobre a importância da praia, sob a ótica de cada participante. Ao final, listaram temas que seriam abordados na pesquisa, como a necessidade de fortalecer políticas de ordenamento territorial e a inclusão das praias em fóruns de discussão sobre gestão da água.
Em outra etapa do projeto, representantes de secretarias municipais responsáveis pela administração de praias em Caraguatatuba, Ubatuba, São Sebastião e Ilhabela relataram aos pesquisadores as dificuldades que identificavam nos processos de governança. Chegaram à conclusão de que a administração pública precisa dialogar mais com o conhecimento científico e criar condições para que a população seja ouvida ao longo do processo de tomada de decisão.
“As praias são os ecossistemas costeiros menos estudados e há poucas informações científicas suficientes para dar suporte à sua gestão”, reconhece Turra. Por isso, ele ressalta que o diálogo entre pesquisadores e outros atores sociais tende a beneficiar a todos. “Gestores e habitantes têm conhecimento detalhado sobre o local que muitas vezes nós, da academia, não temos. Já os cientistas oferecem informações técnicas e subsídios para discussões mais consistentes do ponto de vista teórico.”
Os sucessivos cortes no orçamento de agências federais e estaduais têm fragilizado a capacidade de financiamento à ciência no Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 304) e isso já afeta grupos de pesquisa dedicados a contribuir com a Década do Oceano, alerta a oceanógrafa Vanessa Hatje, pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Energia e Ambiente da Universidade Federal da Bahia (Cienam-UFBA). “A redução de recursos públicos nos obrigou a redesenhar o fluxo de trabalho e, infelizmente, a dimensão social de nosso projeto perdeu força nos últimos quatro anos.”
Hatje se refere ao projeto interdisciplinar Baía de Todos os Santos, lançado em 2008 e que no momento segue em sua terceira fase. Planejada para seguir até 2038, a iniciativa, da qual participam dezenas de pesquisadores, investiga aspectos físicos, biológicos, culturais e históricos da região. “Desde o início, contamos com a participação da comunidade, especialmente populações tradicionais em vilas de pescadores. São os grupos mais vulneráveis à contaminação do mar por produtos químicos.” Um deles, explica a pesquisadora, é o gadolínio, um elemento usado como contraste em exames de ressonância magnética. “Ele é eliminado na urina e, por não ser retido no tratamento de esgoto, vai parar em rios e no oceano. É um contaminante emergente que pertence a um grupo de elementos chamado de tecnologicamente críticos, por serem empregados em processos e produtos tecnológicos.”
Um dos objetivos do projeto é contribuir para a gestão sustentável da baía de Todos os Santos, a segunda maior do país – menor apenas que a de São Marcos, no Maranhão. “Sem a pesquisa participativa, projetos como o nosso correm o risco de perder seu impacto social”, observa Hatje. “Isso porque essa metodologia amplia a possibilidade não só de produzirmos resultados importantes para o avanço da ciência, mas também de impactar concretamente a realidade e a gestão local.”
Ao pavimentar o caminho para a pesquisa participativa e a coprodução de conhecimento, a Década do Oceano lança luz sobre a vocação da ciência para encontrar soluções e influenciar políticas públicas com mais força. Por isso, a Década está em consonância com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, especialmente no que diz respeito à necessidade de assegurar disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento básico para todos.
Foi em um seminário sobre as ODS realizado há quatro anos em Santos, que reuniu pesquisadores, gestores públicos e membros da sociedade civil, que nasceu a ideia do Observatório da Interface entre Ciência e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável, lançado no dia 8 de junho, quando se comemora o Dia Mundial do Oceano.
A iniciativa é fruto da parceria entre a prefeitura da cidade e a Unifesp, por meio de projeto do Programa de Políticas Públicas da FAPESP. “Trata-se de um espaço permanente dedicado ao planejamento de ações locais, baseadas na ciência e no diálogo com a sociedade, a fim de atingir as metas da Agenda 2030 e da Década do Oceano, e fortalecer a gestão sustentável e participativa do oceano”, diz Alessandra de Sousa Franco, chefe do Departamento de Articulação da prefeitura santista.
Uma das prioridades do Observatório, já no contexto da Década do Oceano, é encontrar soluções para o problema da poluição marítima decorrente da falta de saneamento no Dique Vila Gilda, a maior comunidade de palafitas do Brasil, na zona noroeste de Santos. Grande parte do lixo encontrado na região costeira, explica Franco, é produzida pelas moradias assentadas sobre palafitas, que foram construídas em área de mangue, o que possibilita o escoamento dos resíduos até o mar.
Fica claro, portanto, que assuntos de moradia social, planejamento urbano e desigualdade social afetam diretamente a saúde do oceano. “Sem falar que, em Santos, temos o maior porto da América Latina, recebemos muitos turistas e contamos com áreas de pesca artesanal e industrial. Tudo isso impacta o ecossistema e é permeado por conflitos de interesse”, ressalta a gestora.
Para ela, a articulação entre atores tão diversos é o maior desafio para a consolidação do Observatório. “A sociedade civil é heterogênea, composta por agentes com interesses variados e, portanto, marcada por embates profundos”, lembra Franco. “Não é nada fácil tirar do papel projetos baseados em modelos colaborativos.”
Reconhecer riscos e incertezas, além de ter paciência ao negociar a criação de uma força-tarefa com diferentes atores sociais, é pré-requisito para colocar em campo estudos participativos, observa a cientista ambiental Deborah Santos Prado, que atualmente faz estágio de pós-doutorado no Instituto do Mar da Unifesp. Ela integra um projeto de pesquisa, apoiado pela FAPESP em convênio com o Belmont Forum, que, entre outros objetivos, busca fazer um levantamento participativo dos conflitos que atingem a pesca artesanal na costa paulista.
“O estudo conta com a colaboração do terceiro setor, de entidades governamentais, como a Fundação Florestal de São Paulo, e de pescadores locais”, conta Prado. A primeira etapa da pesquisa acaba de ser concluída. “Fizemos um levantamento dos conflitos por meio de formulário on-line respondido por mais de 70 pessoas e de oficinas remotas de validação com 114 participantes diretamente ligados à pesca artesanal em praias do litoral de São Paulo, identificamos 132 relatos de conflitos envolvendo a atividade de pesca artesanal e comunidades de caiçaras.” A maioria dos relatos foi feita pelos próprios pescadores, que trouxeram à tona, com riqueza de detalhes, fatos até então desconhecidos dos pesquisadores.
De acordo com ela, os entraves que mais ameaçam a pesca artesanal no litoral paulista referem-se a inadequações na legislação e na fiscalização, além de disputas territoriais entre pescadores e grandes empreendimentos, como portos e empresas produtoras de petróleo e gás, e também os impactos da poluição. “Há leis defasadas desconectadas do modo de vida dos pescadores locais, que muitas vezes acabam sofrendo ações mais truculentas do Estado, representado pela polícia ambiental”, aponta Prado.
No campo da ciência oceânica, diz ela, a pesquisa sobre conflitos socioambientais pode ajudar a entender como recursos marinhos são usados por diferentes atores sociais. Segundo a pesquisadora, a partir dessa compreensão é possível pensar medidas de conservação e planos de desenvolvimento sustentável mais realistas, que levem em conta a particularidade de cada local. “É fundamental trabalhar em conjunto com grupos mais vulneráveis, como pescadores e pescadoras artesanais, que construíram uma relação íntima com o oceano por séculos e têm muito a nos ensinar.”
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais