Com ações múltiplas e baseadas em evidências, modelo do Instituto Dara pode inspirar políticas públicas de Estado
Por Gilberto Stam, da Pesquisa Fapesp | O desespero bateu em Priscila de Oliveira quando ela chegou com o filho de 2 anos ao Hospital Federal da Lagoa, no Rio de Janeiro, em agosto de 2019. Os gritos da criança, que sofria de hipospádia, uma malformação genética rara na uretra de meninos, eram apenas um dos muitos problemas que afligiam a família. Oliveira precisou deixar o emprego em um escritório de contabilidade quando estava grávida do garoto – a gestação era de risco – e, desde então, não conseguiu outra ocupação. Àquela altura, não tinha dinheiro para comprar a comida do dia a dia e os alimentos antialérgicos caros de que o garoto precisava. Também estava prestes a ser despejada do lugar onde vivia com a criança e a filha adolescente.
Encaminhada pelo hospital a uma organização não governamental, o Instituto Dara (ID), Oliveira ingressou em um intenso programa talhado para pessoas em situação de vulnerabilidade. O chamado Plano de Ação Familiar (PAF) leva em média dois anos e se baseia em uma abordagem multidisciplinar e integrada de combate à pobreza. As famílias são selecionadas em hospitais públicos, Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e escolas públicas da cidade, e passam por uma entrevista para mapear suas condições de vida. A iniciativa oferece apoio em cinco frentes simultâneas: saúde, moradia, renda, cidadania e educação. “De nada adianta tratar uma criança no hospital para ela voltar com uma doença mais grave ou falecer por viver em condições insalubres”, ressalta a clínica-geral Vera Cordeiro, criadora e diretora do Instituto Dara – termo em sânscrito que significa estrela. “A recepção foi muito acolhedora”, conta Oliveira, que, no primeiro contato, teve uma longa conversa com a assistente social sobre suas dificuldades e a depressão que a afligia. “No mesmo dia conversei com uma psicóloga. Ela me passou seu telefone e disse para ligar sempre que precisasse, em qualquer horário. E me disse que podia telefonar a cobrar.”
De início, a organização fornece remédios, leites especiais, quando necessário, e uma recarga no cartão de alimentação no valor de R$ 200 por família. O serviço social verifica se as crianças estão em dia com o calendário de vacinação e médicos avaliam as necessidades da família inteira. A depender dos resultados, são orientadas sobre locais de vacinação, hospitais ou médicos especialistas a procurar. Caso haja necessidade de consultas ou exames, são encaminhadas para o sistema público ou para profissionais e laboratórios privados — alguns deles parceiros do ID que atendem com desconto ou gratuitamente. “As pessoas geralmente não conhecem seus direitos e não sabem aonde ir”, observa Cordeiro.
Para começar a reconstituir a renda, o ID verifica que benefícios do governo estão disponíveis para cada família, como programas de transferência de recursos, vale-transporte e auxílio para doenças graves. Isso foi fundamental para Oliveira. Com o apoio da equipe jurídica, ela solicitou para seu filho o Benefício de Prestação Continuada previsto na Lei Orgânica de Assistência Social, concedido a pessoas com deficiência. “Demorou dois anos para sair, mas recebi pagamento retroativo e pude dar entrada em um apartamento, que termino de pagar em oito anos”, comemora.
Algoritmo familiar
Além de médicos, advogados e psicólogos, outros especialistas também se envolvem, como arquitetos e engenheiros, que ajudam a melhorar as condições de moradia, nutricionistas e especialistas em capacitação para aumentar a renda. As sugestões e os encaminhamentos de todos eles são registrados como metas no sistema de informática do ID, que, uma vez por mês, fornece um retrato da evolução das famílias em diversas áreas. “A equipe acumula uma grande quantidade de dados e eles servem como evidência para indicar se as ações funcionaram ou não”, diz o mexicano Daniel Ortega Nieto, especialista sênior de políticas públicas do Banco Mundial, que avaliou a metodologia do PAF em 2013 durante um trabalho de pós-doutorado na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos.
Para Vera Cordeiro, o sistema de informática, elaborado em parceria com a McKinsey, consultoria norte-americana que não cobrou pelo serviço, e aprimorado por empresas como a Radix, é o cerne da tecnologia social do ID. O desafio é dar sentido ao enorme conjunto de informações coletado pela equipe técnica e voluntários. Ela conta que, por meio do sistema, todos os profissionais envolvidos conseguem acompanhar o desenvolvimento das famílias. O psicólogo, por exemplo, sabe o que o médico está fazendo, enquanto o arquiteto atua em colaboração com o engenheiro.
São pactuadas metas a serem atingidas, monitoradas em visitas mensais que as famílias fazem ao ID. As crianças devem estar vacinadas e, se tiverem idade suficiente, frequentar a escola. Os pais podem escolher cursos profissionalizantes para melhorar sua qualificação, mas precisam mostrar que estão participando deles. Caso não cumpram suas contrapartidas, os integrantes correm o risco de serem desligados do programa para dar oportunidade a outros. Eles são liberados – ou “recebem alta”, como dizem os voluntários – depois de cumprirem critérios bem estabelecidos. Todos deverão estar com o estado clínico pelo menos regular. Se algum membro sofrer de uma doença crônica, ela tem de estar controlada e estabilizada. Em relação à renda, ao menos um adulto deverá estar trabalhando e a renda per capita da família não pode ser inferior a um quarto do salário mínimo. A moradia precisa ser de alvenaria, sem infiltrações nas paredes e com serviço de esgoto, entre outras exigências.
“Quando percebi que poderia me virar sozinha, pedi para ser desligada, pois sei que outros necessitavam de mais ajuda do que eu”, afirma Oliveira, que, acompanhada dos filhos e de voluntários, foi até a rua das Palmeiras, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, e tocou o sino na entrada do ID no momento em que foi graduada no programa, um ritual para celebrar a superação da vulnerabilidade social, sua dignidade e autonomia.
A avaliação realizada por Ortega, que comparou os participantes no início do PAF e depois de três a cinco anos após a “alta”, indicou que o tempo médio de internação em hospitais foi reduzido em 86%, enquanto a renda delas aumentou 92%. A taxa das que tinham casa própria subiu de 26% para 50% no período. “Fazer com que um programa multifacetado em cinco áreas funcione é extremamente complexo; e o ID conseguiu”, diz Ortega. Foram avaliadas 127 famílias que concluíram sua passagem pelo PAF entre 2008 e 2011.
Muitas vezes, as assistentes sociais visitam a casa das famílias e percebem que a situação é pior do que a relatada. “Atendemos pessoas abaixo da linha de pobreza, que sentem muita vergonha por sua situação e acham que é por culpa delas”, ressalta Cordeiro. A médica conta que, além de goteiras e infiltrações, é comum virem à tona situações de violência doméstica, desemprego, depressão, entre outras vulnerabilidades. No caso de violência doméstica, os psicólogos e equipe jurídica dão orientação às mulheres sobre seus direitos e as medidas que podem tomar. Em alguns casos, a solução passa por dar uma opção de trabalho. O ID oferece aos participantes cursos de culinária, cabeleireiro e manicure, que rapidamente fornecem uma fonte de renda, mas há outras possibilidades. Oliveira recebeu consultoria profissional sobre finanças e gestão de renda, comprou computador, instalou internet e começou a ganhar dinheiro trabalhando em casa para o antigo escritório. Outra mãe queria trabalhar como segurança: o ID pagou-lhe um curso e ela foi empregada no Aeroporto Internacional Tom Jobim. Uma terceira aprendeu a consertar aparelhos de ar-condicionado. “O autossustento e a autonomia ajudam a mulher a ser dona do seu próprio destino, muitas vezes saindo de relacionamentos tóxicos”, ressalta Cordeiro.
Para romper o isolamento e suprir a falta de redes de apoio, as mães se reúnem sob a orientação de um psicólogo para compartilhar informações sobre violência doméstica, gravidez na adolescência, trabalho e outros temas relevantes. Há ainda grupos de WhatsApp que disseminam vagas de emprego e cursos. “O trabalho de entidades como o ID estimula a formação de redes de solidariedade locais, fundamentais para tratar a saúde e a pobreza”, observa o patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP.
Cordeiro estima que o ID atenda entre 300 e 400 núcleos familiares por mês, quase todos chefiados por mulheres. Como cada um tem cerca de quatro indivíduos, o número total de pessoas chega a 1.600 por mês. Nos últimos 30 anos, estima-se que a ONG teve impacto direto na vida de 85 mil pessoas e, indiretamente, de mais de 1 milhão, já que inspirou organizações de vários países a adotarem estratégias do PAF. O instituto forneceu consultoria sobre sua tecnologia social a integrantes da Universidade de Baltimore, em Maryland, nos Estados Unidos, e à instituição Girl Move, para ações em Moçambique.
De 2017 a 2022, o ID foi eleito a melhor ONG da América Latina e ficou perto das 20 melhores do mundo em todos os anos, de acordo com classificação da thedotgood, uma organização de mídia independente sediada em Genebra, na Suíça. A demanda pelo método do ID pode crescer, uma vez que o número de brasileiros na pobreza chegou a 47,3 milhões ao final de 2021, um aumento de quase 11 milhões ao longo do último ano. Cerca de 6,3 milhões deles atingiram a pobreza extrema.
“Vera Cordeiro é uma médica atenciosa que reconheceu, na prática, o que é necessário para tratar a saúde de forma integral. O trabalho dela é impressionante”, elogia o epidemiologista britânico Michael Marmot, do University College em Londres (UCL), no Reino Unido, que presidiu a Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) e liderou durante 40 anos pesquisas sobre desigualdade nessa área. O pesquisador afirma conhecer poucas iniciativas no mundo que levem em conta de forma tão abrangente os fatores sociais que condicionam a saúde.
O PAF foi criado em 1991, quando Cordeiro, que trabalhava no Hospital Federal da Lagoa, no Rio, resolveu acompanhar crianças e suas famílias em situação de alta vulnerabilidade após a alta e investigar as condições que causavam seu frequente retorno e, muitas vezes, o óbito. Para recebê-las, montou um espaço improvisado em um estábulo no Parque Lage, também no bairro do Jardim Botânico, onde fundou a ONG, chamada na época Associação Saúde Criança Renascer. “Os pobres não são todos iguais: cada família vulnerável tem um ou mais fatores que a debilitam. Em alguns casos, um dos responsáveis está envolvido com drogas, em outros a casa é extremamente insalubre. E há situações em que a violência doméstica é um fator que agrava as condições de vida”, salienta Cordeiro, que conta a história da ONG no livro A cobertura do mundo, em coautoria com Roberta Pennafort (editora Batel, 2021).
“Quando governos e ministérios falam sobre gastos em saúde, geralmente se referem ao sistema público de saúde. Mas os reais determinantes estão fora desse sistema”, ressalta Marmot, que, junto com Cordeiro, foi um de quatro líderes mundiais homenageados em um especial sobre desigualdade na saúde feito pela revista de divulgação científica Scientific American e pelo periódico Nature, publicado em junho. “O ID lida com as condições sociais que fazem com que as pessoas adoeçam.”
Um problema frequente enfrentado por políticas públicas é que elas tratam de populações em condições muito heterogêneas. “O risco de infarto do miocárdio, por exemplo, pode variar 10 vezes em uma mesma cidade, de acordo com a região”, ressalta Saldiva. Para ele, quando o endereço de um indivíduo ajuda a prever esse risco de forma mais precisa que o nível de colesterol – por ele morar em um local extremamente insalubre –, tornam-se necessárias políticas públicas que levem em conta as condições específicas de grupos ou territórios, não só as individuais. “Entidades como o ID fazem política pública de precisão”, diz ele, adaptando o termo “medicina de precisão” – que customiza o tratamento de acordo com informações pessoais do paciente, como dados genéticos.
“O trabalho do ID poderia ser implementado em maior escala, em parceria com instituições privadas”, opina Saldiva. Algo semelhante aconteceu em Belo Horizonte, a partir de 2009. Com o apoio da Fundação Avina, sediada no Panamá, o ID trabalhou em cooperação com os Cras, da prefeitura, e desenvolveu um serviço semelhante ao PAF.
Os resultados positivos ajudaram Cordeiro a atrair apoio financeiro de seis entidades filantrópicas internacionais, suas principais apoiadoras: a Linde Foundation (no Brasil, White Martins), a Fundação Ursula Zindel-Hilti, sediada em Liechtenstein, a ONG Ashoka Empreendedores Sociais, a Fundação Skoll, ambas sediadas nos Estados Unidos, a Fundação Schwab, parceira do Fórum Econômico Mundial, sediada na Suíça, e a Fundação Avina; além de empresas e entidades nacionais e doações de pessoas que contribuem de forma pontual ou periódica, compondo um orçamento que sustenta a organização e ajuda a manter o padrão de atendimento.
Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.