Um novo modelo de negócios mais sustentável desencoraja o consumo de recursos

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Se o modelo econômico atual está se esgotando, o jeito é propor algo novo, como fizeram o engenheiro britânico Hugo Spowers e o holandês Dave Hakkens. E a proposta deles é parar de vender produtos, mas sem abrir mão dos lucros

Antes de começar a ler, reflita sobre as duas fotos logo aí embaixo:

Ambas integram o projeto “Intolerable Beauty: Portraits of American Mass Consumption”, ou “Beleza Intolerável: Retratos do Consumo em Massa Americano”, do fotógrafo Chris Jordan (veja o trabalho completo clicando aqui). E mostram que, apesar de ser possível encontrar alguma beleza naquele monte de lixo, ele é resultado direto do modelo econômico e industrial nada sustentável que temos hoje. A questão é achar uma saída. Afinal, as pessoas querem, sim, uma vida mais saudável, mas também não abrem mão das facilidades que a produção em série tornou possíveis.

Muita coisa já vem sendo feita, como tratamento de resíduos, uso de matéria-prima reciclada, reflorestamento, menos uso de energia e por aí afora. Só que isso não elimina o problema, belamente fotografado por Jordan. E o motivo é simples: em tempos de reciclar, reduzir e reutilizar, o modelo de negócios típico premia o uso de recursos. O objetivo é o crescimento econômico, representado quase sempre por aumentos sucessivos de vendas.

Não é contraditório? É essa pergunta que o engenheiro britânico Hugo Spowers faz em cada uma das apresentações de sua empresa, a Riversimple. E, longe de apenas levantar a questão, Spowers propõe a solução do problema: o fim da venda de produtos. No caso dele, de automóveis. Sem o fim do benefício que eles trazem.

“Eu acho que o modelo de negócio da indústria tem de mudar. E acho que isso não se aplica apenas à indústria automotiva, mas a todas. Se queremos ter uma sociedade industrial sustentável, temos de abandonar a venda de produtos. Temos de vender a performance, o serviço ou o benefício. Porque, se vendemos produtos, premiamos diretamente o consumo de recursos. Quanto mais recursos você consumir, mais dinheiro vai ganhar. Até políticos já entenderam que o que temos de maximizar não é o uso de recursos, mas a eficiência em seu uso. Como ter uma sociedade industrial sustentável se premiamos exatamente o oposto disso?”, diz Spowers.

Ele propõe um modelo de negócios sustentável e que seguirá em sua empresa. Esse modelo se baseia no carro que ele pretende produzir. O primeiro criado pela Riversimple, chamado de Demonstrador de Tecnologia 1, ou Mk1, era um protótipo. Foi criado para provar que era possível ter automóveis mais eficientes. Com 370 kg e dois lugares, ele usa uma pilha de combustível e supercapacitores para chegar a um consumo de hidrogênio equivalente a 106 km/l de gasolina. A velocidade máxima é de 80 km/h, suficiente para qualquer trajeto urbano, e ele chega a essa velocidade em apenas 10 segundos, o que o torna quase esportivo.


Hugo Spowers na apresentação oficial do Riversimple Mk1

O Mk1 por inteiro

A pilha de combustível gera energia elétrica a partir do hidrogênio e só deixa água como subproduto. Como o carro é leve, a pilha pode ser igualmente pequena (6 kWh) e mais barata.


A pilha de combustível do Mk1, que consome hidrogênio para gerar energia elétrica e tem como resíduo apenas água

Com base neste primeiro protótipo, o engenheiro e sua equipe agora desenvolvem um modelo maior, de cerca de 3,70 m de comprimento, 460 kg e também de dois lugares, mas capaz de atender às exigências europeias de segurança e de homologação. O estilo será desenvolvido por Chris Reitz, ex-diretor de design da Alfa Romeo, e lembrará o Honda Insight de primeira geração, lançado em 1999, segundo Spowers. Ele será apresentado em março de 2015. Só que você não poderá comprar o carro, ainda que possa usá-lo como se fosse seu. A Riversimple quer que você o alugue.

A empresa cobrará de seus clientes uma taxa mensal, estimada hoje em 250 libras esterlinas (cerca de R$ 900) mais 15 centavos de libra (pouco mais de R$ 0,50) por milha percorrida. É caro para padrões brasileiros, mas bem razoável para os ingleses. “Teremos um contrato de serviço que incluirá tudo, até combustível. Isso muda fundamentalmente o custo de introdução de uma nova tecnologia ao mercado. Quando você faz um novo carro, com tecnologia inovadora, e o vende, você tem de lançar este veículo a um preço competitivo com relação aos modelos convencionais. Você tem de reduzir o preço da pilha de combustível. E o custo de fabricar um carro com motor a combustão é incrivelmente baixo devido ao volume de fornecedores. Só que, para criar volume, você tem de reduzir o preço! Isso gera um círculo vicioso. Por onde começar? No nosso caso, criamos um carro com pilha a combustível, que é muito mais eficiente, mas não o vendemos. Vendemos o serviço. Há uma grande economia na vida do veículo com pilha a combustível. Quando você o vende, essa economia vai para o consumidor. No nosso caso, ela vem pra nós. Então podemos pagar mais pela pilha no começo porque economizaremos muito ao longo do contrato”, diz Spowers.

Em vez de devolver o carro ao final de cada dia, como em um aluguel, o cliente usa o veículo como se ele fosse seu, ficando com ele enquanto o contrato estiver em vigor. E ele pode durar anos. Com isso, a Riversimple assume o ônus da propriedade, já que a confiabilidade mecânica e a economia de combustível deixam de ser preocupações do usuário. Passam a ser da empresa. Se desenvolver motores mais eficientes, uma carroceria mais segura ou uma pilha que apresente vantagens, o upgrade de equipamentos corre por conta da Riversimple. Não é vendido um modelo novo para substituir o antigo, como ocorre hoje. As maiores vantagens da posse, entre elas a liberdade de ir e vir de modo individual, continuam com o cliente.

Phonebloks

Outro empreendedor de olho em um futuro sem tantos produtos é o designer holandês Dave Hakkens. Em janeiro do ano passado, pensando em seu trabalho de conclusão de curso, Hakkens se lembrou de um problema que teve com sua câmera fotográfica. Ela quebrou e ele conseguiu detectar que o defeito estava no motor das lentes. Bastaria substituí-lo para consertar a câmera, mas ele não encontrou o motor à venda em lugar nenhum e todos, de revendedores a assistências técnicas, diziam a ele que o melhor seria jogar a câmera fora e compra uma nova. Estava criado o ambiente para o nascimento do Phonebloks, um projeto de telefone celular modular. O slogan dele é “A Phone Worth Keeping”, ou “Um telefone que vale a pena manter”.

A ideia é simples, mas não será das mais fáceis de implementar. Com uma base comum, que conecta os elementos, inclusive a tela, o Phonebloks tem diversos módulos diferentes que permitem montar o telefone mais conveniente para cada usuário, como mostra seu vídeo de apresentação abaixo, infelizmente disponível apenas em inglês.
Quem prefere mais autonomia pode colocar um módulo de bateria maior. Quem ama fotografia pode instalar uma câmera mais potente. E por aí afora.

O Phonebloks e seu sistema modular

Para conseguir concretizar sua ideia, Hakkens pediu apoio aos interessados na ideia no vídeo acima. Ele conseguiu o apoio de 970.554 pessoas, que conseguiram um alcance social de 378.987.875. Com isso, Hakkens provou o interesse do público pelo conceito e o apoio da Motorola, então ainda uma empresa da Google, que revelou estar trabalhando em algo muito parecido, o Projeto Ara. O designer e a empresa vêm trabalhando juntos desde então. “Agora estamos focados no desenvolvimento e em convencer o mundo que devemos trabalhar mais em direção à modularidade”, diz Hakkens.

Questionado sobre o modo como os Phonebloks serão vendidos e se há planos de algo parecido com o que Spowers pretende fazer com a Riversimple, Hakkens diz: “Vender o serviço seria definitivamente uma opção interessante, já que as empresas poderiam implementar a economia circular de modo mais fácil, mas ainda não chegamos nesta etapa.” O foco, além do desenvolvimento, é dar um basta nos mares de celulares velhos que começam a se formar pelo mundo, algo que os módulos ajudariam a resolver.

O dilema dos inovadores

Voltando à conversa com Spowers, pergunto se ele nunca pensou em fazer parcerias com fabricantes já estabelecidos, para resolver algumas questões de volume e de fornecimento de peças. Inclusive porque um dos sócios da Riversimple é Sebastian Pïech, membro da família que controla o grupo Volkswagen. Mas a ideia não daria certo, segundo ele. “Não acho que é possível para indústrias maduras mudar seu modelo de negócio. É muito mais difícil do que introduzir novas tecnologias. Quando você entra no campo de tecnologias muito inovadoras, que quebram os moldes, quase invariavelmente o modelo de negócio também tem de mudar. Então, eu não estou tentando conversar com a indústria para convencê-la a fabricar um carro como o que faremos. Não é teoria da conspiração. É apenas que eles são muito, muito bons no que já fazem. Fica difícil pedir para eles fazerem algo diferente. Seria um pedido irrealista e não muito justo.”

Prova de que a indústria automotiva não está pronta para uma quebra de paradigmas são os veículos com pilha a combustível já apresentados, como o Honda FCV Clarity. “Um protótipo de carro com essa pilha feito pela indústria custa 25 vezes mais do que o nosso. Eles querem a mesma potência de um carro normal. Se ele tem motor de 100 kW, eles querem uma pilha de 100 kW e essa não é uma maneira muito inteligente de lidar com essa tecnologia, tentando trocar um motor por uma pilha. Eles têm de achar um modo de adicionar a tecnologia ao que já têm porque a capacidade industrial deles está presa às carrocerias feitas de aço. Não dá para deixar as prensas de lado de uma hora para outra e simplesmente partir para a fibra de carbono. Os concessionários, por sua vez, dependem da manutenção de um carro convencional, com suas trocas de óleo e de peças, para sobreviver. Se você pega um carro sem partes móveis, como o nosso, a não ser pelas rodas, o sistema de distribuição desaba. Por isso você precisa de um novo modelo de negócio. Eu entendo por que eles estão fazendo isso: estão resolvendo os problemas que eles mesmos criaram. É algo que eles não conseguiriam evitar, mesmo que quisessem.”


O Honda FCX Clarity é um modelo convencional, mas com pilha a combustível

A razão para isso, e para a indústria não se concentrar na venda de produtos, como faz hoje, é algo que Spowers explica logo em seguida. “Os executivos, por mais antenados que sejam, têm um mandato muito limitado do que podem fazer. A empresa não é deles. Eles trabalham para os acionistas e esses caras têm um patrimônio muito líquido nas mãos. Eles podem vender suas ações quando quiserem. Sim, eles se preocupam com o longo prazo, mas não têm autonomia para lidar com isso”, diz o engenheiro. “O melhor livro de negócios que já li se chama ‘O Dilema da Inovação’, de Clayton M. Christensen. Ele me deu a base para seguir com a Riversimple. No livro, Christensen diz que uma tecnologia realmente inovadora é um passo inicialmente pior do que o que já está estabelecido. Pilhas de combustível são piores do que motores a combustão na base em que os carros são vendidos atualmente, que é desempenho. Pilhas são horríveis em termos de potência específica. E a razão para isso acontecer é que as indústrias maduras são muito boas no que elas fazem. E são muito focadas no que os clientes querem. Isso impede que elas invistam nas novas tecnologias e que sejam pioneiras nisso. Há sistemas formais pra medir o que o consumidor quer. Só que, como já disse Steve Jobs, às vezes o consumidor não sabe o que quer até ser apresentado ao produto. Sabe quem inventou o relógio digital? Foram os relojoeiros suíços, meio de brincadeira. Fizeram o relógio para mostrá-lo em feiras e ridicularizá-lo. Só que os clientes gostaram tanto do relógio digital que a indústria suíça quase foi à falência por causa dele.”


O Dilema da Inovação, de Clayton M. Christensen, também publicado em português

Para evitar os problemas que pode ter pela frente, tanto em razão da tecnologia quanto da mudança no modelo de negócios, Spowers já traçou sua estratégia, parecida com a dos Phonebloks. “Nosso carro será open source. Daremos a receita de graça para quem a quiser. Isso gerará volume na cadeia de fornecedores e nos ajudará a tornar o negócio viável. Se adotarem os nossos padrões, não teremos de ter canais de distribuição nem problemas com fornecedores. O valor em uma empresa é a marca, não é o produto, em si. É o nosso nome. Outra coisa: não queremos filiais, queremos joint-ventures. O que levaríamos à parceria seria o conhecimento e meios de desenvolver a tecnologia naquele mercado, mas cada um a desenvolve do jeito que achar melhor. Um carro que serve para tudo faz tudo de modo ineficiente. É o menor denominador comum, o que significa que ele nunca será excelente para uma cultura particular. Os carros têm de ser desenvolvidos para seus mercados. Se falarmos do Brasil, o carro terá de ser desenhado no Brasil, por brasileiros. Você acabará com um produto mais adequado ao mercado. É um alinhamento de interesses.”

Assim que o carro definitivo estiver pronto, a Riversimple fará pequenas frotas do modelo, em torno de 30 carros, para cidades pequenas, como Leicestershire, Herefordshire e Shropshire, no Reino Unido. “O problema é infraestrutura. Por isso vamos começar pequenos, mas comercialmente viáveis: para gerar receita. Sem receita, não conseguimos desenvolver a tecnologia nem ganhar escala. Por isso começaremos por áreas. Será mais fácil convencer as companhias de abastecimento a ter um posto só para nossos primeiros 30 carros, todos em uma cidade só, do que pedir a elas que espalhem postos de abastecimento pelo país com uma frota de apenas 30 carros circulando. Elas vão querer investir porque farão dinheiro. Talvez tenhamos de montar a primeira estação de abastecimento, pra mostrar que ela funciona e dá lucro, mas isso deve ser necessário apenas no princípio.”

Para o futuro, além de mais cidades entre as atendidas pela Riversimple, a empresa também deverá oferecer novos tipos de carroceria, para mais passageiros, e outros modelos. Mas Spowers quer dar passos pequenos. “Já ouviu o ditado sobre como fazer Deus dar risada? É fácil: conte a ele seus planos”, diverte-se o engenheiro. Entre outros ditados, também se diz que, quando Deus fecha uma porta, abre uma janela. E pode ser a janela apontada por Spowers a que a sociedade e a indústria procuram há tantos anos.


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