Por Sarah Schmidt em Revista Pesquisa FAPESP – Há 65 milhões de anos a queda de um meteorito onde hoje é o Golfo do México abriu uma cratera de 200 quilômetros (km) de diâmetro e provocou mudanças na atmosfera da Terra que levaram à extinção de 75% das formas de vida, entre elas os dinossauros. No entanto, nem sempre essas grandes colisões com planetas ou seus satélites geram destruição. Esses choques também podem precipitar mudanças físicas e químicas capazes de resultar em aminoácidos, moléculas essenciais à vida, e até formas primitivas de vida, como bactérias. É o que pode ter ocorrido em Menrva, uma cratera com 425 km de diâmetro ao norte do equador de Titã, a maior lua de Saturno, por meio de um intrincado conjunto de fenômenos geológicos, físicos e químicos. Menrva é a deusa etrusca das artes e da guerra na qual os romanos parecem ter se baseado para criar a deusa Minerva.
“A colisão que formou Menrva, a maior cratera de Titã, pode ter sido suficiente para romper a camada de gelo de 75 km a 100 km de espessura que recobre um oceano líquido submerso”, explica o geólogo Alvaro Crósta, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp), autor de um estudo que avaliou a formação da cratera, publicado online no final de agosto na revista Icarus. “Ao furar a crosta de gelo, o impacto pode ter trazido material orgânico do oceano para a superfície e da superfície para o oceano”, complementa a astrônoma brasileira Rosaly Lopes, do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL) da Nasa, a agência espacial norte-americana, que participou desse trabalho.
Lopes considera Titã, com bastante material orgânico em sua superfície, o corpo celeste conhecido que mais se assemelha à Terra. Com atmosfera, essa lua de Saturno é o único lugar do Sistema Solar, além da própria Terra, em que correm rios – nesse caso, de metano, que também cai como chuva. Titã tem ainda intensa atividade geológica, com ventos que formam dunas e erosão que modifica suas crateras.
A astrônoma trabalhou na missão Cassini-Huygens, que orbitou Saturno e algumas de suas luas de 2004 a 2017, e, com base nos dados coletados, estudou o potencial ainda incerto de Titã abrigar alguma eventual forma de vida. A sonda verificou que a temperatura média da superfície de Titã é de 180 graus Celsius (˚C) negativos, tão baixa que faz com que o gelo seja duro como as rochas da Terra.
Crósta e Lopes, com suas equipes, examinaram a formação de Menrva por meio de dados colhidos pela sonda Cassini-Huygens e de simulações matemáticas, processadas em um supercomputador. Na simulação mais consistente, o cometa (corpo formado por gelo) ou asteroide (rochoso) que formou Menrva teria 34 km de diâmetro e deve ter viajado pelo espaço à velocidade de 15 km por segundo (km/s) – ainda não se sabe qual seria a natureza do objeto. Ao entrar na atmosfera de Titã, 50% mais densa que a da Terra, perdeu velocidade e atingiu o solo a 7 km/s (o equivalente a 25,2 mil km por hora).
Como uma pedra lançada sobre a água, o impacto que formou Menrva, entre 500 milhões e 1 bilhão de anos atrás, deve ter gerado ondas circulares sobre a superfície de gelo, aquecido pela colisão. “Parcialmente liquefeita pela energia do impacto, a superfície de Titã deve ter se comportado de forma elástica”, conta Crósta, que trabalhou no JPL em 2018 e 2019 com apoio da FAPESP. Isso teria permitido a formação de padrões semelhantes aos observados quando uma pedra cai na água. “Inicialmente, surge um pico central cercado por anéis. Em seguida, esse pico colapsa e afunda. Esse movimento de subida e colapso se repete algumas vezes”, explica o geólogo.
Em Titã, de acordo com as simulações, o movimento de subida e descida do pico central é que, em poucos segundos, deve ter rompido a grossa camada de gelo, não o impacto inicial do cometa ou asteroide. Segundo Crósta, depois do rompimento, as camadas e os materiais orgânicos teriam permanecido em movimento por cerca de 150 minutos, até se estabilizarem sob a ação da gravidade. O pico central pode ter se elevado a 40 km de altura antes de se assentar. De acordo com as simulações, o pico central e as bordas resultantes devem ter sido bem mais altos do que os 500 metros atuais – eles teriam sido consumidos pela erosão durante centenas de milhões de anos.
A temperatura de uma colisão como a que formou Menrva pode ter sido suficiente para decompor moléculas, entre elas as de água, da superfície de gelo. “A energia resultante do impacto pode modificar e formar novas moléculas ou gerar novos compostos”, avalia o astrobiólogo Fabio Rodrigues, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), que não participou do estudo. Ele argumenta que essas informações poderiam orientar o desenvolvimento de futuras missões a Menrva ou mesmo a escolha de eventuais locais de pouso.
“Desde a descoberta de Menrva nos perguntamos se a colisão poderia ter rompido essa crosta de gelo”, comentou, por e-mail, Ralph Lorenz, do Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, autor do livro Saturn’s moon, Titan: Owners workshop manual (Haynes Publishing UK, 2020). “Esse novo estudo mostra resultados consistentes desse rompimento, como esperávamos”, afirmou.
Lorenz é o projetista-chefe da missão DragonFly, da Nasa, que pretende enviar um drone à superfície de Titã para investigar sinais efetivos da presença de água ou de compostos orgânicos. Uma sonda e o drone devem partir da Terra em 2027 e chegar à lua de Saturno em 2035. O local escolhido para o pouso é uma região próxima à cratera de Selk, com 80 km de diâmetro.
“Ela é pequena demais para ter rompido a crosta de gelo logo abaixo da superfície, mas o impacto que a formou permitiu que a água resultante interagisse com os compostos orgânicos da superfície”, explica Lorenz. Como ele argumentou em um artigo publicado em fevereiro na revista The Planetary Science Journal, a cratera Selk foi escolhida por causa da facilidade de pouso e da visibilidade a partir da Terra.
Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.
Projeto
Modelagem de processos de impacto na superfície gelada de Titã (nº 17/27081-1); Modalidade Bolsas no Exterior ‒ Pesquisa; Pesquisador responsável Alvaro Penteado Crósta (Unicamp); Investimento R$ 95.583,08.
Artigos científicos
CRÓSTA, A. P. et al. Modeling the formation of Menrva impact crater on Titan: Implications for habitability. Icarus. v. 370, n. 114679. 27 ago 2021.
LORENZ, R. D. et. al. Selection and characteristics of the Dragonfly landing site near Selk crater, Titan. The Planetary Science Journal. v. 2, n. 24. fev 2021.
Este texto foi originalmente publicado por Revista Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.
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