Uma inundação de Amazônia

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Por Magali Cabral em Página22 À primeira vista, 2021 pode parecer um ano perdido para os que torcem pelo desenvolvimento sustentável da região amazônica. Com as taxas de desmatamento nas alturas e o garimpo ilegal devastando rios e Terras Indígenas, o medo de ver o bioma se deteriorar de vez espalhou-se pelo País. Mas quem acompanhou as atividades da rede Uma Concertação pela Amazônia no período percebeu o fortalecimento de uma ampla resistência da sociedade civil e organizações empresariais brasileiras.

“São mais de 500 pessoas envolvidas nesse movimento”, afirma Roberto Waack, cofundador da iniciativa e presidente do Conselho do Instituto Arapyaú, durante a plenária virtual “Retrospectiva 2021 e Perspectivas 2022”, realizada em 6 de dezembro. “Aos poucos vamos chegando no objetivo inicial de uma conversa promovida em fevereiro de 2020 pelo Guilherme Leal [presidente do Conselho de Administração da Natura]: precisamos institucionalizar a Amazônia para todos os brasileiros e fortalecer a conexão com os amazônidas.”

A compositora Maria Gadú faz um depoimento crítico ao sistema de produção vigente na abertura da plenária: “Somos antropofágicos, comemos nosso próprio lar”. Nesse momento, muitos devem ter revisitado na memória as imagens que percorreram o mundo neste final de 2021 das centenas de dragas de garimpo ilegal de ouro dominando e poluindo um trecho do importante Rio Madeira.

Ocorrências como essa justificam a pressa da Concertação. A ambição da rede, dividida em oito grupos de trabalho (GT), é que o Brasil tenha assumido a missão moral e civilizatória de proteger a floresta e os povos originários e tradicionais, bem como assumido a sua vocação de potência ambiental. É o que diz Ilona Szabó de Carvalho, diretora executiva do Instituto Igarapé e uma das facilitadoras do GT Narrativas, cujo objetivo é estimular uma visão mais contemporânea sobre a Amazônia, que mude o atual paradigma e toque os corações e mentes de atores políticos estratégicos para a importância do bioma.

“Trabalhamos na construção de uma narrativa, sempre aberta a participações, que seja incorporada também pela cultura e identidade da população brasileira”, pontua. Para Szabó, essa conexão dos brasileiros com a Amazônia é fundamental para aflorar uma afetividade e um pertencimento nacional em relação às riquezas locais. “Nós protegemos o que amamos e amamos aquilo que conhecemos”, afirma.

Ao longo de 2021 o grupo entendeu a importância de se trabalhar com narrativas engajadoras voltadas às oportunidades e ao futuro, em vez de insistir em realçar as ameaças. Para fechar o ano, o GT concluirá um decálogo/manifesto com as propostas de narrativas resultantes das trocas com grupos da região.

Em 2022, o GT quer expandir esse imaginário amazônico, articulando-se com influenciadores de eventos nacionais e internacionais, a fim de que as novas mensagens de identificação com a Amazônia cheguem a todo o País e reinsiram o Brasil na geopolítica global.

INUNDAÇÃO NO ENSINO

A base para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, objetivo maior da Concertação, está na educação, dimensão que atua de forma transversal em todas as temáticas da rede. Mais do que isso, é preciso “inundar de Amazônia” o Ensino Médio para que as novas gerações de residentes da Amazônia Legal se tornem protagonistas desse desenvolvimento. Essa é a tônica do GT Educação, facilitado por Fernanda Rennó, doutora em Planejamento Territorial e consultora do Instituto Arapyaú.

Paulo Andrade, integrante do GT e diretor de educação do Instituto Iungo, conta que, em apenas seis meses de existência, o grupo conseguiu mobilizar cerca de 25 organizações do Terceiro Setor com atuação na região amazônica na construção de algumas premissas essenciais: empoderar as redes de ensino, promover a equidade e pensar o conhecimento como bem público. Em sua avaliação, essa aproximação com as organizações locais fortalecerá a colaboração entre o GT Educação e as redes de ensino e permitirá construir um trabalho que faça sentido e seja transformador.

Em 2022, o GT Educação pretende formatar um planejamento estratégico de estruturação das iniciativas, incluindo processos de monitoramento e avaliação de todas as ações. Segundo Andrade, também estão na agenda um roadshow (exposição itinerante), para apresentar aos nove estados da Amazônia Legal o que se quer construir e levantar recursos para viabilizar as iniciativas, e também uma “redeshow”, para engajar as redes de ensino. “É essencial estabelecermos uma conexão íntima com os territórios nas relações envolvendo redes de ensino,  organizações comunitárias,  educadores e alunos”, diz.

INTELIGÊNCIA POLÍTICA

Se a formação é um elemento fundamental no desenvolvimento da Amazônia e fortalecimento de suas redes, a informação e a formulação de análises coletivas também é. Imagine o sentimento de um especialista que toma conhecimento de uma notícia bombástica sobre sua área de expertise pelas redes sociais, ou mesmo pelo Diário Oficial. A sensação deve ser de desconexão com o que se passa no mundo real, onde as transformações acontecem, mais precisamente no meio político.

Essa fragilidade informacional não é incomum entre muitas organizações socioambientais, segundo a diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), Mônica Sodré, que inclui sua própria entidade nesse rol. Foi a partir dessa provocação que nasceu o GT de Inteligência Política, do qual tornou-se facilitadora.

“Esse GT veio contribuir para que o conjunto de organizações do ecossistema da Concertação tenha, além das ferramentas para monitorar em tempo real o que está acontecendo no Legislativo, no Executivo e no debate público, um espaço semanal, regular e seguro, de conversas sobre como o tema socioambiental está se comportando nessas três esferas”, explica.

Semanalmente, o GT entrega um relatório sobre os últimos acontecimentos políticos relacionados ao setor e realiza uma reunião virtual com as organizações do ecossistema. O propósito é melhorar os entendimentos sobre os assuntos em pauta e as estratégias de incidência para quem as faz. Ao longo de 2021 ocorreram 29 encontros virtuais e 29 relatórios foram emitidos. “Temos também um alerta em tempo real por WhatsApp que é acionado quando um determinado tema em trâmite ‘se mexe’”, informa.

Segundo Sodré, o maior valor desse GT está na inteligência coletiva que as 15 organizações o compõem aportam semanalmente nas reuniões. Para 2022, a intenção é ampliar o número de encontros e de organizações envolvidas e buscar maior aproximação com o meio político.

A BIOECONOMIA É POP

O campo da bioeconomia na Amazônia foi um dos que atraiu para a sua órbita uma enorme diversidade de atores. Inaiê Santos, consultora do Instituto Arapyaú e uma das facilitadoras do GT Bioeconomia, ressalta o sucesso do Fórum de Inovação e Investimentos na Bioeconomia Amazônica, realizado em junho – resultado de uma parceria entre a Concertação e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas (Sedecti). “O evento ajudou a alavancar uma série de novos engajamentos”, comemora.

O espaço virtual do Fórum foi dividido entre saberes tradicionais indígenas, empreendedores da base das associações, cooperativas extrativistas, investidores, representantes de governo, acadêmicos, organismos multilaterais, organizações da sociedade civil, entre outros. “Começamos a identificar ali os temas correlatos que poderiam despertar maior interesse e os destaques foram para Ciência, Tecnologia e Inovação”, relata. “O evento permitiu ainda que o relacionamento do GT se expandisse entre representantes de outros países da Pan-Amazônia.”

Além do Fórum, o GT participou do 2º Seminário de Bioeconomia, organizado pela Sedecti, em Manaus, durante a Exposição Agropecuária do Amazonas (leia mais aqui e aqui). O grupo organizou painéis sobre mudança climática, inclusão, diversidade, rastreabilidade, soberania alimentar, além de atividades culturais, lúdicas e pocket shows.

Para 2022, o objetivo é manter o tom, além de aprofundar alguns temas-chave da bioeconomia: “Vamos trabalhar transversalmente os temas de financiamento, cadeias de valor, redes de conhecimento produtivo, políticas públicas e bases de dados. Temos consciência de que esse ecossistema é importante para os negócios de impacto na Amazônia e deve ser cada vez mais fortalecido”, observa a facilitadora.

CHEGOU A VEZ DAS FLORESTAS

O primeiro ano desta década de 2020 não foi fácil para quase ninguém, mas ainda assim houve o que celebrar. Além de comemorar o crescimento e a consolidação da própria Concertação, Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), facilitador do GT Engajamento do Setor Privado, brinda o protagonismo do bioma amazônico na COP 26, em Glasgow, na Escócia: “Foi memorável”, avalia.

Segundo ela, não foram poucas as Conferências das Partes em que se tentou sem sucesso dar maior centralidade às florestas. Finalmente, em Glasgow, mais de 100 países assinaram o Forest Deal, um acordo para a proteção de florestas, combate a incêndios, reflorestamento e proteção de Terras Indígenas. Para Grossi, a iniciativa deverá impulsionar toda uma agenda favorável à manutenção dos biomas brasileiros. “O Acordo do Metano [que estabeleceu o compromisso de cortar em 30% as emissões do gás até 2030] foi outro ponto decisivo na COP”, diz.

O GT Engajamento do Setor Privado apresentou na COP 26 um documento, apoiado por 40 empresas de diversos setores, contendo o posicionamento do setor empresarial brasileiro sobre a Amazônia. A carta, intitulada Combate ao Desmatamento Ilegal e Promoção de uma Economia Inclusiva e Regenerativa, aponta seis pilares para o desenvolvimento sustentável: rastreamento da cadeia, ambiente institucional e transparência, bioeconomia, energia e infraestrutura, inclusão econômica e social das comunidades locais, e tecnologia.

Pensando em 2022, Grossi chama a atenção para o peso que a Amazônia precisa projetar nas eleições majoritárias. As causas amazônicas devem ser apresentadas aos candidatos presidenciáveis e do legislativo. Outra iniciativa do GT será trazer CEOs das empresas associadas ao Cebds à Amazônia para uma viagem de escuta atenta que terá como mote a pergunta: “O que a Amazônia pode nos ensinar?”. Também está no radar do grupo promover uma aproximação com os empresários locais.

PAPO RETO

A força trazida pelas juventudes aos movimentos de sustentabilidade mundo afora é tão inegável quanto a importância do GT Juventudes no ecossistema da Concertação. Cofacilitado por Mariana Resegue, secretária-executiva do coletivo Em Movimento, o grupo recém formado vem trabalhando na criação de vínculos entre si e na compilação de dados sobre as juventudes amazônicas. Resegue ressalta que a Região Norte tem as capitais com a maior taxa de juventude, 28% da população, seguida pelas capitais nordestinas, com 26%.

“É um contexto em que o bônus demográfico ainda está muito ativo e é importante aproveitá-lo”, afirma. Por outro lado, o Atlas das Juventudes mostra que a desigualdade entre os jovens brasileiros é ainda maior do que entre a população geral.  “Se o Brasil fosse composto só de jovens, estaríamos hoje entre os cinco países mais desiguais do mundo”, ressalta.

Para 2022, o GT planeja incrementar o envolvimento da juventude de forma transversal dentro dos demais GTs da Concertação, e estuda formas de alcançar a maior parcela da população jovem possível que queira se engajar para garantir seus direitos.

PAPO HARD

O GT Ordenamento Territorial e Regularização Fundiária dedicou-se ao longo do ano a discutir o novo marco legal da regularização fundiária no Brasil e a elaborar um documento sobre o tema.

Segundo a facilitadora Carolina Graça, da Earthworm Foundation, o ano 2021 foi “regado” a conversas com especialistas a fim de que o grupo harmonizasse conhecimentos, entendesse a origem dos problemas na região amazônica, verificasse o que já está sendo feito e os caminhos possíveis de se trilhar.

Essas conversas geraram muitas informações que serão compartilhadas brevemente com interessados. Segundo Graça, apesar de se tratar de um assunto “hard”, é importante que todos, mesmo as pessoas que atuam em outras áreas, tenham algum conhecimento sobre esse campo. “Por exemplo, para que se possa usufruir das oportunidades relacionadas ao mercado de crédito de carbono que estão se desenhando no horizonte, será preciso antes  sanear as questões de ordenamento territorial e regularização fundiária”, explica.

Em 2022, o GT deseja fazer pilotos em ordenamento territorial e regularização fundiária que transformem em prática o conhecimento do grupo. Outra perspectiva é ampliar as rotas de intervenção e a escuta junto a alguns públicos para construir soluções mais abrangentes. “Faremos consultas dirigidas aos movimentos sociais, entidades subnacionais e produtores de pequeno e médio porte na Amazônia sobre a visão deles de futuro, visando o ordenamento territorial na região”, finaliza.

O LADO SENSÍVEL

“Diferentemente dos demais GTs, o da Cultura tem uma dinâmica mais orgânica. Funcionamos com as portas abertas e as conexões são feitas a partir das necessidades e das vontades”, descreve a facilitadora Fernanda Rennó. A ideia é garantir que haja na Concertação um pilar sensível que preencha todos os seus espaços e produtos com arte e histórias de vida. “Desse modo, ajudamos a aterrissar as discussões que, de tão alto nível, correm o risco de desconectarem da realidade local”.

Ao longo de 2021, o GT Cultura trabalhou no intuito de sensibilizar a Concertação, o Brasil e o mundo por meio da arte e da cultura amazônica. Agora, prepara-se para inverter essa dinâmica: “Está na hora de tentar levar os conteúdos tratados na Concertação para as comunidades locais. Para isso, temos de entender qual será a linguagem que vamos usar para acessar as pessoas”, explica Rennó. “Trazemos a sensibilidade para o mundo racional mas levamos aspectos técnicos para o mundo mais sensível, o que não quer dizer que não exista racionalidade lá”.

Para 2022, o GT pretende criar uma galeria de artes e de histórias de vida na plataforma da Concertação. Será um espaço virtual aberto aos artistas que quiserem expor seus trabalhos. Se a pandemia permitir, o grupo pretende realizar duas exposições presenciais. Estão previstas também ações para comemorar os 100 anos da Semana de Arte de 22. Um festival também deverá ser organizado para celebrar o Dia da Amazônia, em 5 de setembro. “É importante colocar o território em foco, levando, por meio da arte e da cultura, essa Amazônia para todos os eventos internacionais previstos para o ano que vem”, conclui Rennó.

A própria plenária “Retrospectiva 2021 e Perspectivas 2022” foi recheada de arte e cultura. Além do canto de Maria Gadú, os trabalhos foram abertos com o poema Panta Rei, dito pelo autor, o filósofo Eliakin Rufino. A multiartista amazonense Rakel Caminha também trouxe seu depoimento: “Eu estou aqui como jovem, representando o GT Juventudes. Eu penso que só a juventude não é suficiente [para mudar o mundo]. Temos de estar unidos para conseguir fazer alguma coisa de fato. Eu vejo nesse espaço uma possibilidade. Uma vez ouvi uma frase: o adulto é jovem, só que por mais tempo. É verdade. Aqui existem os jovens e os jovens por mais tempo. Que a gente mantenha essa chama da vontade de um mundo melhor para todos”.

Equipe eCycle

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