Termo utilizado por urbanistas, urbanicídio tem sido usado para chamar atenção para as violências promovidas pela privatização
Urbanicídio é um termo que tem sido usado por urbanistas, arquitetos, gestores ambientais, geógrafos e outros especialistas para se referir aos diversos tipos de violências que ocorrem no ambiente urbano.
Essas violências são retroalimentadas pela forma de desenvolvimento das cidades, que, geralmente, envolve processos de classismo, capacitismo, arquitetura hostil, gentrificação, misoginia, racismo e injustiça ambiental.
O que é e como surgiu o urbanicídio?
O urbanicídio é um produto material histórico surgido a partir do contexto de cada território. No Brasil, com o advento da colonização e das formas de ocupação do solo, influenciadas pelo modelo econômico capitalista, as cidades se desenvolveram de modo a privilegiar certos tipos de violências.
Dadas as peculiaridades de cada cidade brasileira, em geral, todas elas refletem uma sociedade produzida às margens do sistema capitalista que promove desigualdades urbanas.
Quais são as consequências e causas do urbanicídio?
As desigualdades geradas pelo urbanicídio podem ser vistas no modo como cada grupo social vivencia a cidade. Os mais pobres, por exemplo, além de terem uma renda menor, geralmente não têm acesso ao tratamento de água e esgoto, à iluminação, à cultura, ao lazer e à mobilidade.
Paralelamente, mulheres, mães, lésbicas, gays, pessoas racializadas como negros e indígenas e outras minorias vivenciamos a exclusão social consequente da ausência de planejamento urbano.
Por exemplo, jovens negros são a maioria dos mortos pela polícia no Brasil, enquanto as mulheres negras mães solo compõem os principais grupos em situação de insegurança alimentar.
Esse cenário não é mera coincidência, mas sim, um produto da produção da sociedade capitalista. Ao jornal Conexão UFRJ, o professor Carlos Vainer, titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, destaca que:
“Parcelas da cidade se transformaram progressivamente em ativos financeiros e constituem uma dimensão da especulação que domina o conjunto da economia capitalista. A relevância da cidade contemporânea nos processos de acumulação e financeirização ficou evidenciada na grande crise de 2008, deflagrada pelo estouro da bolha especulativa financeiro-imobiliária nos EUA.
A captura e a colonização da cidade pela financeirização têm sequelas mais que conhecidas: captura e privatização dos espaços públicos, enobrecimento e produção de espaços exclusivos, segregações urbanas, limpezas socioétnicas etc. O capital financeiro se urbaniza, a cidade se financeiriza… e desta forma ganha novo e relevante lugar no processo de concentração da riqueza.”
Como resolver o problema do urbanicídio?
A solução para o urbanicídio não é simples visto que há forças poderosas ao lado de corporações que financeirizam o espaço público. Essas forças têm contribuído não só para a mudança do uso do solo reduzindo a democratização do espaço público, mas também fomentando a cultura de segregação.
Isso porque o espaço urbano é o local onde as crianças aprendem e brincam, os alunos leem e as pessoas trabalham, caminham e relaxam. É por meio de atividades como essas que a cultura urbana de qualquer cidade é criada. Por isso, a aparência dos espaços urbanos deve-se ao desenho urbano, uma ferramenta poderosa.
Pesquisas mostram que a transformação dos espaços públicos afeta marcadamente a diversidade do que as pessoas fazem neles e se elas os usam. Mas, a produção das cidades tem promovido a privatização dos espaços, onde atividades como sentar-se para descansar, andar de skate e vender artesanatos passaram a ser ilegais.
Em seu livro de 1968, O Direito à Cidade, o filósofo e sociólogo marxista francês Henri Lefebvre descreveu a cidade como um espaço cocriado. Isso contrasta com a definição mais capitalista em que o espaço urbano é uma mercadoria a ser comprada e vendida, Lefebvre o via como um local de encontro onde os cidadãos construíam coletivamente a vida urbana.
Teóricos urbanos há muito notam a conexão entre como uma cidade é projetada e como a vida é conduzida dentro dela. A acadêmica norte-americana Jane Jacobs é famosa por destacar que as cidades fracassam quando não são projetadas para todos. E a produção do arquiteto dinamarquês Jan Gehl tem focado consistentemente no que ele chamou de “vida entre edifícios”.
Como explicou Gehl, para uma cidade ser boa para seus moradores, os responsáveis por projetá-la precisam estar cientes de como ela está sendo usada: o que as pessoas estão fazendo em seus espaços. Para serem bem-sucedidos, os projetos urbanos devem ser focados e voltados para a vida cotidiana das pessoas. Gehl explicou que projetar uma cidade para pedestres – em uma escala caminhável – é como você a torna saudável, sustentável, animada e atraente.
Quando usamos os espaços públicos, mesmo que apenas a curto prazo, estamos efetivamente nos apropriando deles : urbanistas e arquitetos falam em “apropriação temporária” para descrever as atividades individuais ou em grupo com as quais investimos esses espaços.
A pesquisa também destacou como isso pode ser democrático. Mas depende de que esses espaços sejam projetados em conjunto com os moradores. Quando um espaço público, ao contrário, é excessivamente projetado sem levar em conta as necessidades das pessoas, ele não é usado.
Desde a década de 1970, os teóricos urbanos destacam que só fazemos uso dos espaços públicos onde nos sentimos representados. Para que o desenho urbano funcione, é crucial prestar atenção ao que as pessoas locais realmente pensam de sua cidade.