Por Luiza Caires em Jornal da USP — O nome desta droga rodou em diversos grupos e conversas de WhatsApp e Telegram, mas não somente ali. Prescrições e mesmo a automedicação com ivermectina se multiplicaram durante a pandemia, e ainda há quem defenda seus efeitos na covid com unhas e dentes – ainda que a boa ciência já tenha demonstrado o contrário. Ao investigar a origem de toda esta fama, inclusive argumentando com seus defensores, somos inundados com links para “estudos” e periódicos que, para quem não tem intimidade com os meandros da pesquisa e publicação científica, passam facilmente como provas da eficiência da droga.
Essa reportagem vai abordar mais a fundo dois deles: o site ivmmeta.com e um artigo publicado na revista Cureus. O primeiro caso é mais gritante: o site é anônimo, não faz parte de nenhum periódico científico, além de violar as regras mais básicas da metodologia científica – inclusive com distorção estatística grotesca para quem entende um pouco do assunto. A conclusão forjada, mas propagada inclusive por médicos em vídeos na internet, é de que a chance da ivermectina não funcionar contra a covid é de 1 em 1 trilhão.
Já o segundo caso envolve artigo publicado em uma revista que vem sendo fortemente questionada pelo processo de revisão frágil: os próprios autores indicam os revisores, e o tempo de revisão de poucos dias foge totalmente ao que é considerado por especialistas o mínimo necessário para fazer uma verificação atenta. Os autores também ocultaram conflitos de interesse, como trabalhar para o laboratório que produz ivermectina no Brasil. Mais que a falta de credibilidade, há uma série de inconsistências graves no próprio artigo – e nos dados, como paciente com 119 anos e outro que consta como tendo tomado 6 mil comprimidos da droga – que, mais uma vez, levam ao resultado favorável para a ivermectina na covid, ao contrário do que estudos sérios apontaram.
Mas antes de falarmos deles, na segunda parte dessa matéria, precisamos entender como funciona o ecossistema das publicações científicas, e por que, quando bem ajustado, ele é essencial para a ciência médica.
No século 19 apareceram as primeiras revistas científicas. Cientistas se encontravam em academias como a Royal Society, na Inglaterra, ou a Académie, na França, contavam seus achados para os colegas e essas academias reuniam os trabalhos em anais. Depois, as publicações de interesse científico se especializam, surgindo, durante o século 20, as revistas específicas.
E por que elas são tão importantes? “O processo científico precisa de organização, protocolo. É só a partir do registro que é possível reproduzir uma pesquisa e confirmar aquela informação, por exemplo. As publicações, por sua vez, geram outras perguntas e novas pesquisas. Os estudos e seus resultados precisam ser públicos”, explica Bruno Caramelli, médico cardiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Mais tarde, as revistas introduziram a revisão por pares. “Como o volume de artigos submetidos para as revistas começa a ser grande demais para os editores decidirem o que deve ou não ser publicado, eles pedem opinião para experts da área”, conta o físico Leandro Tessler, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos fundadores do Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais.
Funciona assim: depois de fazer o estudo, a pesquisa propriamente, pesquisador e sua equipe escrevem um texto apresentando o que esperavam responder com aquele estudo, como ele foi feito e quais resultados foram obtidos. E mandam para uma revista que tem relação com o assunto pesquisado. “O editor-chefe da revista tem o papel de aceitar ou recusar o estudo; se aceitar, o estudo irá passar por revisão por pares, quando outros pesquisadores, que não ganham por isso, leem a pesquisa e fazem sugestões. Às vezes até recusam o estudo, mas enviam sugestões de melhora. Se nenhuma revista acabar aceitando, o autor pode engavetar o texto ou submetê-lo a revistas menores ou com um crivo um pouco mais fraco”, expõe José Alencar Neto, médico cardiologista no Instituto Dante Pazzanese e autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências.
A revisão é dita por pares porque é feita por especialistas, assim como o autor da pesquisa, para conferir, dentro do texto, se há algum erro metodológico. “O papel da revisão é garantir que a produção científica tenha qualidade”, diz Caramelli.
A pandemia potencializou um problema com que a ciência se depara há alguns anos, principalmente após a popularização da internet. Se, por um lado, a multiplicação de periódicos representou algum avanço na democratização do acesso e divulgação do conhecimento científico, por outro, deu origem a uma série de publicações científicas (ou com cara de científicas) de baixíssima qualidade e alta tolerância para artigos metodologicamente ruins, quando não escritos a partir de dados fraudados. É neste tipo de revista que se insere a totalidade dos estudos que expõem como conclusão a eficácia da ivermectina contra a covid.
Também a divulgação de preprints – artigos ainda não revisados por pares, que são armazenados em repositórios on-line – aumentou durante a pandemia, já que era uma condição de catástrofe e os cientistas tinham pressa em compartilhar trabalhos e acompanhar os resultados dos colegas. “Os preprints foram concebidos originalmente para reforçar a transparência. Quando faço a primeira versão do meu artigo e submeto a uma revista, muitas vezes os revisores fazem vários pedidos de modificação. Então fica uma primeira versão nessas plataformas, que pode ser comparada com a final”, explica Ana Carolina Peçanha Antonio, médica intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pesquisadora em Integridade em Pesquisa e Metapesquisa.
Ela diz que, na pandemia, muitas pessoas completamente alheias ao mundo das ciências biomédicas repassaram tanto artigos em preprint, quanto os publicados em revistas que antes não recebiam muita atenção, fracos ou com erros.
Quase nenhum fator que vamos elencar aqui, isolado, é garantia da qualidade de uma produção científica. Mas todos se complementam, e o primeiro indício é a qualidade do periódico onde a pesquisa foi publicada. Existem revistas predatórias, que têm uma revisão por pares fraca ou até mesmo inexistente, estando interessadas apenas em receber o valor que o autor paga para publicar ali. “Esse problema é anterior à pandemia, e uma das coisas que o explicam é a pressão, na carreira acadêmica, para que o cientista publique artigos. Ele depende de um volume de publicações para progredir e ter financiamento”, explica Ana Carolina Peçanha.
Caramelli diz que revistas reconhecidas normalmente não deixam passar trabalhos ruins ou fraudados, embora isso também possa acontecer. Durante a pandemia, por exemplo, revistas de renome como a The Lancet até chegaram a publicar estudos que mais tarde se descobriu serem fraudados. “Mas isso não piora a imagem da revista, já que os estudos foram retirados do ar. Não vivemos em uma redoma protegidos de fraudes”, comenta Alencar Neto. “Revistas menores e que só estão interessadas em cliques podem não fazer o mesmo”, conta.
Na área médica, também é recomendado saber se aquele periódico está indexado em uma base de dados chamada Pubmed, que tem uma série de regras para incluir uma revista, funcionando como um filtro. “É só digitar o nome da revista e o termo ‘pubmed’ no buscador e você descobre se a revista está indexada”, diz Alencar Neto.
O fator de impacto de uma revista diz quantas vezes, em média, um artigo publicado nela é citado em outros artigos. Ele é mais um indício da qualidade da revista. A mais famosa da área médica, o New England Jornal of Medicine, por exemplo, tem o mais alto fator de impacto entre todas as revistas científicas, maior que 90.
“Há essa hierarquia das revistas. Em geral, quando escreve um trabalho, você sabe para onde deve mandar. Se é uma coisa muito quente, você vai querer mandar para uma revista muito quente, se não, mandará para uma revista menos prestigiosa. O que traz mais prestígio para uma revista é um processo de seleção de revisão rigoroso e o impacto que ela tem na sociedade”, diz Tessler.
Alencar Neto faz uma ressalva: o fator de impacto pode variar de acordo com a área de pesquisa, já que também mede o interesse público daquela publicação. Assim, o ideal é comparar o fator de impacto das revistas das mesmas especialidades.
Ana Carolina Peçanha diz também que as revistas menos importantes ganharam algum empoderamento na crise da covid, e até aumentaram seu fator de impacto. “A própria revista tem interesse em publicar artigos com resultados extraordinários, que sejam polêmicos, mesmo que gerem críticas, pois geram citações”, afirma a pesquisadora.
Por fim, Alencar Neto destaca que os estudos têm objetivos diferentes, e por isso nem sempre um bom estudo estará nas maiores revistas. Mas se o artigo está num bom periódico, certamente tem mais chance de ser confiável.
Também existe uma análise subjetiva: verificar quem são os autores das pesquisas. “Eles fazem parte de instituições de pesquisa reconhecidas? Eles e suas instituições têm uma produção científica relevante naquela área? Os autores têm algum conflito de interesse que pode interferir, conscientemente ou não, no resultado que o artigo apresenta?”, indica Tessler como perguntas.
Olhando para o artigo em si, embora seja complexo para uma pessoa leiga em ciência entender as falhas metodológicas de um estudo, há alguns sinais para os quais ficar atento, que podem facilitar essa identificação.
Na pesquisa médica, vale ver se estamos diante de um estudo observacional, que tem um nível mais baixo de evidência, ou controlado, que tem nível maior. Enquanto a pesquisa observacional simplesmente analisa os desfechos do uso de uma droga ou terapia em uma dada população, na pesquisa clínica controlada se fornece um tratamento para um grupo de pacientes em um estudo planejado, e se compara quem fez e quem não fez uso daquela droga, e tomou apenas placebo. Não é que o estudo observacional, por si só, seja ruim. Muitas vezes ele é necessário, como em estudos epidemiológicos. Também não é possível fazer grupo controle em pesquisa de cirurgias, por exemplo. “Costumo falar, generalizando, que estudos observacionais geram hipóteses e estudos controlados podem confirmar hipóteses”, diz Alencar Neto. “Mas se estamos testando a eficácia de um medicamento, o estudo precisa ser controlado”, declara.
Depois, é preciso verificar se o estudo foi duplo cego, quando nem a pessoa que recebeu a intervenção, nem quem a avalia sabem se ela recebeu o medicamento ou o placebo. O cegamento serve para evitar ou diminuir a atribuição de resultados a uma droga, quando eles se devem, na verdade, ao efeito placebo, ou a um enviesamento de quem avalia. “O método científico é feito para nos proteger de nós mesmos, porque nós queremos que o resultado seja bom. Então você dá ivermectina para os seus pacientes no consultório, e eles ficam bons. Mas como você sabe que eles não ficariam bem se você não tivesse dado absolutamente nada para eles?”, complementa Tessler.
Um bom estudo que avalia tratamentos médicos em seres humanos, o ensaio clínico, no jargão da ciência, também deve ser randomizado no momento de incluir os participantes em cada um dos “braços”. Ou seja, os pacientes são colocados em um dos dois grupos de forma aleatória, sem escolha prévia, para que tanto o grupo que recebeu o tratamento quanto o que recebeu placebo tenham características semelhantes: idade, sexo, condições prévias de saúde, sociais, entre outras.
Leia a parte 2: Caso da ivermectina é representativo da pseudociência propagada na pandemia
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