Experimentos no Rio de Janeiro indicam possibilidades de repor populações perdidas com os surtos da doença
Por Carlos Fioravanti em Pesquisa Fapesp – “Catastrófica.” Assim o biólogo Júlio César Bicca-Marques, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), qualifica a redução populacional de algumas espécies de macacos silvestres, em consequência dos surtos de febre amarela nas regiões Sudeste e Sul.
Desde 2016, quando começou o atual surto de febre amarela, as populações de bugios (Alouatta spp.), bastante suscetíveis ao vírus causador da doença, sofreram uma redução estimada de 80%. O número de saguis-da-serra (Callithrix flaviceps) e de sauás (Callicebus nigrifrons) encolheu também nessa proporção e o de macacos-pregos (Sapajus spp.) caiu à metade. De micos-leão-dourados (Leontopithecus rosalia), concentrados nas matas do estado do Rio de Janeiro, morreram 30%. As estimativas constam em um artigo publicado em outubro de 2021 na American Journal of Primatology, do qual Bicca-Marques é um dos autores.
“A febre amarela foi o tiro de misericórdia para muitas populações de primatas silvestres, que já sofriam com a fragmentação florestal, caça e tráfico, atropelamentos, eletrocussão [morte por descarga elétrica], outras doenças e a concorrência com espécies invasoras”, comenta o biólogo Leandro Jerusalinsky, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O Ministério da Saúde registrou 23 mil mortes de macacos com suspeita de febre amarela de 2014 a 2019; em boa parte dos casos foi confirmada a morte com essa causa, inclusive em espécies ameaçadas de extinção.
Para proteger animais que possam ser transferidos para áreas despovoadas, pesquisadores do Rio de Janeiro estão, pela primeira vez, aplicando a vacina de uso humano contra febre amarela em macacos de espécies suscetíveis ao vírus causador da doença mantidos em cativeiro ou nos de vida livre que podem ser capturados. Até agora, 44 micos-leão-de-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), 19 micos-leão-dourados (Leontopithecus rosalia) e micos-leão-pretos, L. chrysopygus ) e 11 bugios (Alouatta clamitans, A. discolor e A. caraya) do Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ), em Guapimirim, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, receberam o imunizante.
“A soroconversão [taxa de produção de anticorpos] é acima de 90%”, comemora o veterinário Marcos Freire, assessor científico do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que produz a vacina. A vacina contra a febre amarela, como as contra sarampo, rubéola, caxumba e poliomielite, é produzida com vírus vivo atenuado, mas, assegura Freire, “o risco de causar eventos adversos graves em animais tem se mostrado muito baixo, como com as pessoas”.
Agora, os pesquisadores estão definindo a dose ideal para cada espécie de macaco, menor que a usada para as pessoas. A dose fracionada – equivalente a 1/5 da completa, aplicada em 2018 durante o surto da doença em seres humanos – mostrou-se tão eficaz quanto a inteira. Os resultados do estudo com os bugios do CPRJ estão detalhados em um artigo publicado em fevereiro de 2021 na Journal of Medical Primatology. Os trabalhos com os micos-leão ainda não foram publicados, por causa de atrasos nas análises das amostras de sangue colhidas antes e depois da vacinação.
“Por enquanto, para vacinar os bugios e os micos do CRPJ, usamos apenas três frascos de cinco doses humanas cada um”, diz o veterinário Alcides Pissinatti, coordenador do CPRJ. Ele pensou em vacinar os animais do Centro em 2016, ao imaginar que a febre amarela poderia chegar ao Rio, já que havia se instalado em Minas Gerais e no Espírito Santo. Sua proposta encontrou resistência inicial de primatologistas e ecólogos, que estranharam a ideia de imunizar animais silvestres. Freire aderiu de imediato.
Obtidas as autorizações iniciais, os primeiros animais vacinados, ainda em 2017, com o propósito de comparar os efeitos de diferentes doses e formulações, foram 44 micos-leão-de-cara-dourada (L. chrysomelas) indevidamente soltos em matas de Niterói, resgatados pela organização não governamental Pri.matas, por não serem originalmente do estado, e levados para o CPRJ. “Logo depois começou a mortandade de micos nas matas do Rio”, diz Pissinatti.
Em seguida, com base no experimento inicial, 24 micos de três espécies (L. chrysomelas, L. rosalia e L. chrysopugus) receberam uma dose única da vacina atenuada humana diluída. Os resultados mostraram que o uso da vacina era seguro e induzia a produção de anticorpos contra o vírus causador da febre amarela.
Os testes no CPRJ motivaram a ampliação do estudo, que, se bem-sucedido, confirmará o efeito da vacina. Obter as autorizações dos órgãos oficiais, porém, não foi simples porque a vacina de uso humano ainda não havia sido testada em macacos no Brasil e a princípio poderia interferir nas estratégias nacionais de acompanhamento da febre amarela. “Fui ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que me mandou para o Ministério do Meio Ambiente, que me mandou para o da Saúde”, conta Pissinatti.
Após as aprovações oficiais, em meados deste ano o biólogo Carlos Ruiz-Miranda, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), com sua equipe e colegas da Bio-Manguinhos e da Associação Mico-Leão-Dourado, começou a vacinar os micos-leão-dourados que vivem soltos em fragmentos florestais próximos à Reserva Biológica de Poço das Antas, nos municípios de Silva Jardim e Casimiro de Abreu, na região central do estado do Rio de Janeiro, seguindo os métodos definidos no CPRJ.
De um total previsto de 150 micos da fase experimental, os pesquisadores vacinaram cerca de 120. “Em uma avaliação prévia, detectamos a produção de anticorpos em 47 dos 50 animais de que coletamos sangue”, diz Ruiz-Miranda. “Não temos nenhuma evidência de efeito negativo da vacina.”
Os micos são capturados com relativa facilidade: são pequenos, com comprimento de até 30 centímetros (cm) e peso próximo a 800 gramas, e gostam de bananas, usadas para atraí-los. Os animais vacinados recebem também um microchip e uma tatuagem em forma de V na face interna de uma das coxas para serem acompanhados, depois de devolvidos à natureza.
Em Santa Catarina
A biomédica Zelinda Hirano conseguiu em dezembro as autorizações e pretende começar em fevereiro de 2022 a vacinação de 44 bugios-ruivos do Centro de Pesquisas Biológicas de Indaial (Cepesbi) ‒ Projeto Bugio, do qual ela é fundadora e coordenadora voluntária, em Indaial, Santa Catarina. Diferentemente dos micos de Poço das Antas, esses estão em cativeiro.
Em 2019, a febre amarela chegou a Santa Catarina. Um dos macacos do Cepesbi foi infectado e morreu, justificando a vacinação dos moradores das áreas próximas. Para evitar outras mortes, Hirano instalou telas nos recintos dos macacos para impedir a entrada dos mosquitos transmissores do vírus. Segundo ela, os animais se incomodaram com a temperatura mais alta e a dificuldade em ver o exterior, mas nenhum se infectou. O vírus, porém, circulou pela região. A Secretaria Estadual de Saúde registrou 137 macacos mortos em 2021 por causa da febre amarela, que infectou também oito pessoas, das quais três morreram; nenhuma tinha se vacinado.
Em março de 2021, eliminada a proibição de expedições imposta pela pandemia, Hirano voltou à mata de 40 hectares próxima ao Cepesbi (1 hectare corresponde a 10 mil m2). “Ali viviam 57 bugios, em cinco grupos. Alguns eu conhecia havia 30 anos. Chorei muito quando vi que só tinham restado três, de um dos grupos.”
Os bugios mantidos em cativeiro que serão vacinados poderiam eventualmente repor os de populações que colapsaram. “Vamos ter de estudar muito para definir quando, onde e como soltar os animais vacinados”, frisa Hirano. “Temos de considerar também a variação cromossômica entre as populações de bugios da Mata Atlântica. Não podemos misturar os grupos aleatoriamente.” Seu plano converge com a orientação definida pelo CPB em setembro de 2021, após três meses de debates com especialistas de instituições de pesquisa, recomendando a vacinação de bugios a serem utilizados para repovoamento.
Além dessa recomendação, alinhada com os planos de ação nacional para conservação de espécies ameaçadas, há outros critérios a serem seguidos para levar um animal de um lugar para outro. “Para aumentar as chances de sucesso, é fundamental saber a origem dos animais, assegurar que tenham boa saúde, conhecer o comportamento deles, considerar que se trata de animais sociais, que vivem em grupos, e ter um bom diagnóstico sobre a área onde será realizada a liberação”, diz Jerusalinsky. Nos anos 1980, lembra ele, as primeiras tentativas de repovoar matas com micos-leoões-dourados não deram certo porque os animais tinham vivido em cativeiro e não sabiam como se virar na mata. A saída foi misturá-los com animais que viviam soltos e os ensinaram a procurar alimentos e a sobreviver na natureza.
“Os bugios de vida livre, que servem como sentinelas da febre amarela, não serão vacinados, mas as populações remanescentes ganharão o reforço dos animais vacinados em cativeiro”, ressalta Pissinatti. Quando o vírus causador dessa doença chega a uma região, os animais dessa espécie infectados pelos mosquitos que carregam o vírus morrem rapidamente, motivando as equipes de vigilância epidemiológica a iniciarem campanhas de vacinação dos moradores de áreas próximas.
O veterinário e epidemiologista Adriano Pinter, pesquisador da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), que não participa desses trabalhos, sugere: “Talvez fosse possível vacinar os animais de parques públicos, como o Horto Florestal ou o Parque Fontes do Ipiranga, em São Paulo. Seria uma forma de diminuir o risco de urbanização da febre amarela, em locais onde os bugios poderiam ser picados por mosquitos urbanos, potenciais transmissores do vírus”. Por enquanto os surtos têm sido de febre amarela silvestre, transmitida por mosquitos diferentes dos envolvidos na febre amarela urbana, registrada pela última vez no Brasil na década de 1940.
De imediato, uma equipe da Divisão da Fauna Silvestre (DFS) da prefeitura de São Paulo, em conjunto com colegas do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) e da Sucen, se prepara para vacinar 34 bugios-ruivos mantidos no Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAS), instalado no Parque Anhanguera, na zona norte da cidade, no primeiro semestre do próximo ano, seguindo os métodos estabelecidos pelo CPRJ e pela Fiocruz. “Depois da vacinação, pretendemos começar a repor as populações perdidas, como as da Cantareira e do Horto”, diz o veterinário Marcello Schiavo Nardi, da DFS.
Os bugios da Tijuca
Diferentemente dos micos, é difícil capturar bugios de vida livre, o primeiro passo para vaciná-los. Bugios são macacões, com 45 a 60 cm de comprimento e de 4 a 7 quilogramas (kg) de peso. Comem folhas (e não banana), vivem entre 20 e 30 metros (m) de altura, no alto das árvores, e raramente descem.
Em 2017, o biólogo Marcelo Rheingantz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), participou da captura de um bugio no Parque Nacional da Tijuca, de 4 mil hectares, na cidade do Rio de Janeiro. A pata do animal estava machucada por causa de um radiotransmissor que os pesquisadores haviam instalado no ano anterior e precisava ser retirado. Os pesquisadores gastaram cerca de 20 dardos com anestésico até acertar o bicho. “Depois de acertar temos meia hora, mas o bicho pode ficar dependurado pelo rabo ou cair e se machucar. Se cair, temos de ampará-lo com uma rede”, ele conta. Capturado após 10 dias de perseguição, o animal foi tratado e voltou para a vida livre.
Em 2014, Rheingantz coordenou a liberação de quatro bugios (dois machos e duas fêmeas) no Parque Nacional da Tijuca, como detalhado em um artigo de outubro de 2017 na Perspectives in Ecology and Conservation. Ali, o último avistamento de um deles tinha sido feito pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) ao visitar o Rio de Janeiro, em 1832, durante sua viagem ao redor do mundo.
“Esperávamos que os bugios ficassem juntos, mas eles se separaram logo após a soltura”, ele conta. Depois, uma das fêmeas morreu e outra se juntou a um macho e teve cinco filhotes. Para reforçar a população de macacos dessa espécie no Parque da Tijuca, ele pretende soltar mais sete animais do CPRJ (seis fêmeas e um macho), após serem vacinados. “O ideal seria ter lá pelo menos 10 grupos sociais, com um total de 50 adultos, para evitar cruzamentos na mesma família e ter uma boa diversidade genética.”
Segundo Rheingantz, soltar animais vacinados ou vaciná-los em campo pode ser também uma estratégia para recuperar as populações de espécies ameaçadas de extinção. Uma delas é o mico-leão-dourado, que passou de 200 indivíduos na década de 1970 para cerca de 3.600 com os esforços de conservação, mas caiu para estimados 2.400 após os surtos de febre amarela. Uma das dificuldades para recuperar as populações de macacos é que, mesmo vacinando animais em cativeiro e, quando possível, os que vivem soltos, os filhotes não nascem com os anticorpos contra o vírus da febre amarela.
No Rio Grande do Sul, surtos de febre amarela em 2001, de 2007 a 2009 e em 2019 causaram a morte de milhares de macacos. “Matas onde antes ouvíamos bugios silenciaram”, diz Bicca-Marques. Em vista da redução populacional, o bugio-ruivo foi classificado como vulnerável na lista de espécies ameaçadas do Ministério do Meio Ambiente. Nas matas de Florianópolis, já é considerado extinto.
Artigos científicos
BERTHET, M. et al. Dramatic decline in a titi monkey population after the 2016–2018 sylvatic yellow fever outbreak in Brazil. American Journal of Primatology. v. 83, n. 12, e23335.
FERNANDES, A. T. da S. et al. Safety and immunogenicity of 17DD attenuated yellow fever vaccine in howler monkeys (Alouatta spp.). Journal of Medical Primatology. v. 40, n. 1, p. 36-45. fev. 2021.
FERNANDEZ, F. A. S. et al. Rewilding the Atlantic Forest: Restoring the fauna and ecological interactions of a protected area. Perspectives in Ecology and Conservation. v. 15, n. 4, p. 308-14. out. 2017.
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