Extremamente abundantes, os vírus podem ter surgido quatro vezes ao longo da história da Terra e contribuem para a diversidade genética dos seres vivos
Há seis meses não se fala de outro assunto. Desde que foi identificado na China em dezembro de 2019, o novo coronavírus se tornou onipresente. Espalhou-se pelos principais centros urbanos do mundo, infectou milhões de pessoas e deixou centenas de milhares de mortos, em uma pandemia que assusta pela velocidade de disseminação. Em pouco tempo, lotou hospitais, alterou os hábitos da população e o funcionamento das cidades.
Não demorou e era encontrado até nas áreas mais remotas do planeta, de tribos indígenas no interior da Amazônia às terras altas e frias do Reino do Butão, nos Himalaias. O novo coronavírus, no entanto, é apenas uma das centenas de milhares – talvez milhões – de espécies de vírus que se estima existir e que, por causa dos sistemas de transporte modernos, conseguem se disseminar com uma agilidade impensável décadas atrás.
Diante desse cenário, é interessante, melhor, importante, conhecer mais o que de fato são os vírus e como apareceram e se espalharam por todos os cantos da Terra esses seres tão diminutos, feitos basicamente de material genético e proteínas, às vezes capazes de causar doenças devastadoras. Um trabalho recente ajuda nessa tarefa.
Em um artigo publicado em março deste ano na revista Microbiology and Molecular Biology Reviews, um grupo internacional de virologistas criou o primeiro sistema amplo de classificação dos vírus e, ao reagrupar as espécies segundo o grau de semelhança genética, concluiu que eles surgiram ao menos quatro vezes nos 4,6 bilhões de anos de história do planeta. O primeiro aparecimento teria ocorrido antes de os primeiros seres vivos formados por células despontarem na Terra há pelos menos 3,5 bilhões de anos. Nas outras três vezes é provável que formas rudimentares de células já existissem.
Definir o parentesco entre os vírus pelo grau de proximidade genética pode parecer atualmente uma estratégia óbvia. Duas razões, no entanto, tornavam-na quase inviável até pouco tempo atrás. O número de vírus estudados e descritos é relativamente pequeno. O Comitê Internacional de Taxonomia dos Vírus (ICTV), órgão responsável por nomear os vírus e organizar o conhecimento sobre eles, tem catalogadas apenas 6.590 espécies.
É quase nada diante dos quase 1,2 milhão de espécies já registradas pela ciência de organismos formados por células – esse grupo inclui bactérias, arqueias, protozoários, plantas e animais. Além do número reduzido de espécies conhecidas, os vírus têm um número pequeno de genes e poucos desses genes são comuns a diferentes espécies, o que dificulta a comparação e o estabelecimento do parentesco entre elas.
A situação começou a mudar nos últimos 15 anos com o aumento dos estudos de metagenômica, estratégia que permite analisar o material genético recuperado de amostras ambientais e não depende do isolamento e do cultivo de vírus em laboratório. Por meio dela, os especialistas já identificaram centenas de milhares de novas espécies de vírus, que aguardam para ser descritas. “Os trabalhos de metagenômica levaram à descoberta de espécies que preencheram muitas das lacunas na diversidade dos vírus, a virosfera, e permitiram aumentar a confiabilidade dos estudos evolutivos”, conta o virologista brasileiro Francisco Murilo Zerbini, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais.
Zerbini integra o comitê-executivo do ICTV e é coautor da nova taxonomia, criada sob a coordenação de um dos mais respeitados especialistas em evolução de vírus, o biólogo russo Eugene Koonin, do Centro Nacional de Informação Biotecnológica (NCBI), dos Estados Unidos. Nela, os especialistas reorganizaram os vírus levando em conta dois critérios: o tipo de composto usado para armazenar as informações genéticas – a molécula de ácido ribonucleico (RNA) ou a de ácido desoxirribonucleico (DNA) – e o nível de semelhança entre certos genes compartilhados pelo maior número possível de vírus. Assim, chegou-se a um arcabouço amplo, coeso e robusto de classificação dos vírus, o primeiro desde que a existência desses agentes infecciosos foi proposta em 1898 pelo botânico holandês Martinus Beijerinck (1851-1931).
A nova classificação separa os vírus em quatro grandes grupos, chamados de domínios – esses quatro domínios se somariam aos dois outros em que estão distribuídos os seres vivos formados por células. O domínio é a oitava e mais abrangente das categorias taxonômicas. Abaixo dele estão reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie, que agrupam os seres por ordem crescente de semelhança. Um domínio inclui o maior número possível de espécies que compartilham apenas poucos traços em comum.
Só para se ter uma ideia dessa vastidão, todos os seres vivos formados por células (bactérias, arqueias, protozoários, fungos, plantas e animais) integram dois domínios: o dos eucariotas, que reúne os organismos celulares que armazenam seu material genético em um compartimento chamado núcleo, e os procariotas, dos seres com células sem núcleo. Os vírus, por causa do alto grau de diversidade que têm entre si, tiveram de ser separados em quatro, ainda assim, um avanço em relação às tentativas anteriores de classificação, que já tentaram agrupá-los segundo a anatomia, o tipo de tecido pelos quais eram atraídos quimicamente ou pelo tipo de material genético.
No novo sistema de classificação, os vírus são agrupados nos domínios Riboviria, Monodnaviria, Varidnaviria e Duplodnaviria. O primeiro grupo inclui todos os vírus que armazenam as informações sobre sua estrutura e funcionamento – ou seja, seus genes – em uma molécula de RNA. “Muitos pesquisadores imaginam que a vida tenha surgido em um ambiente aquático no qual moléculas de RNA armazenavam a informação genética, o chamado mundo de RNA”, explica Zerbini. “Os vírus de RNA seriam descendentes desse mundo e teriam surgido antes dos organismos celulares.”