Saúde | Diferença na percepção de cores costuma ser notada na infância, em atividades escolares. Pesquisas da UFRGS desenvolvem tecnologias assistivas para a condição, que pode ser congênita ou adquirida
Por Mírian Barradas em UFRGS | Imagine ir ao supermercado comprar bananas e não conseguir distinguir se as frutas estão maduras ou não. Ou, ainda, no primeiro dia de um novo emprego, alguém pede que você organize pastas por cores e você não consegue distinguir bem o verde do vermelho. Situações como essas são frequentes no dia a dia de pessoas com daltonismo, um distúrbio visual que interfere na percepção de cores.
Daltonismo é um termo “guarda-chuva” que engloba diferentes alterações visuais que levam à dificuldade da visualização de cores. A causa mais comum é uma alteração genética recessiva no cromossomo X que impacta nos fotorreceptores, células localizadas dentro da nossa retina responsáveis por captar diferentes frequências da luz. “Nós temos três fotorreceptores que captam diferentes frequências da luz, um mais pro vermelho, outro puxando pro verde e outro pro azul”, explica o médico oftalmologista e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS Daniel Lavinsky. Quando há algum dano específico nesses fotorreceptores, existe alguma dificuldade de visualização de cores.
Isso explica porque há diferentes tipos de daltonismo. As pessoas podem ter deficiências parciais ou totais nos fotorreceptores sensíveis ao vermelho, ao verde ou ao azul. Há, ainda, os chamados monocromatas, com deficiência total em dois ou três desses fotorreceptores e que, por isso, enxergam em tons de cinza. Além dos casos congênitos, em que as pessoas nascem com essa condição, há o daltonismo adquirido, causado por alguma doença que afeta os fotorreceptores.
Pintar o sol de verde limão e a bandeira do Brasil de marrom
As dificuldades costumam aparecer na infância, nos primeiros anos escolares, quando as crianças começam a aprender as cores. Foi o que aconteceu com o corretor de seguros Nelson Ricordi. “Eu ia numa escolinha na zona rural, no interior do Paraná, e nos primeiros anos tem aquelas tarefas que exigem lápis de cor e eu já tinha dificuldade, mas eu achava que era preguiça ou falta de atenção”, conta.
“Eu tinha noção de que pintava errado, porque às vezes eu pintava o tronco de uma árvore de verde, as folhas de marrom, o sol de verde limão, mas naquele momento eu só achava que não sabia as cores”, lembra o publicitário e mestrando em Design pela UFRGS Thiovane Pereira. Esse “não saber” – que na verdade é uma dificuldade de ver as cores – acaba sendo confundido com preguiça ou desatenção: Thiovane conta o caso de um conhecido que, na escola, pintou a bandeira do Brasil de marrom em vez de verde e foi acusado de “desrespeito com a bandeira”. Anos mais tarde, ele descobriu que era daltônico.
Foi também no período da educação infantil que a pedagoga Luciana Marcarini começou a suspeitar que o filho Joaquim, hoje com 11 anos, tinha alguma dificuldade com as cores. “Comecei a perceber que ele tava demorando para saber as cores básicas, mas não quis forçar muito.” Foram acontecendo alguns episódios como a vez em que, em uma padaria, Joaquim foi escolher um produto da vitrine e disse que queria o doce de uma determinada cor. “E eu dizia: ‘Mas não tem nada dessa cor aqui’. E ele: ‘Esse aqui, ó’, apontou um doce e não era da cor que ele dizia”, conta Luciana.
Com a ajuda de um cunhado que também tem daltonismo, Luciana começou a fazer alguns testes disponíveis na internet e percebeu as dificuldades que Joaquim tem com as cores. “A gente chega numa loja de roupas, aquelas que eles colocam tom com tom, vão aumentando os tons – acho que por serem tons muito próximos ele embaralha tudo.” Joaquim ainda não tem um diagnóstico oficial, mas elenca algumas cores que “vê diferente”: “Um amarelo muito escuro, um verde muito claro”. “Tem um tom de azul e cinza que tu vê rosa, né?”, completa Luciana.
Os testes disponíveis na internet também fizeram Thiovane perceber que sua dificuldade na percepção de cores era, na verdade, daltonismo. Quando tinha 13 anos, deparou-se com um post no Facebook com o Teste de Ishihara – que consiste em uma série de cartões pontilhados em várias tonalidades diferentes – e percebeu que não enxergava os números dentro dos cartões. “Foi nesse momento que eu comecei a cogitar o daltonismo”, diz.
Segundo Daniel, existem testes mais elaborados que conseguem diferenciar pequenas alterações de tons nas cores, mas o Ishihara é consagrado como o principal teste de screening (rastreio) para visão de cores. “Ele tem uma resposta boa em termos de acurácia para esses casos não tão discretos, mais evidentes”, ressalta.
Diagnóstico pode ser difícil, mas é fundamental
A dificuldade em chegar a um diagnóstico oficial e preciso é algo recorrente entre as pessoas com daltonismo. Luciana diz que, na cidade onde ela e Joaquim moram, a catarinense Jaraguá do Sul, não é possível realizar o diagnóstico, que precisa ser feito em uma cidade vizinha. Por isso, Joaquim ainda não tem um diagnóstico oficial de daltonismo.
“O que eu acho que tenho é deuteranopia [deficiência total do verde] e protanomalia [deficiência parcial do vermelho]”, conta Thiovane. O “acho”, explica, é por falta de um diagnóstico preciso. Quando tinha 19 anos, ele relatou a um oftalmologista, durante uma consulta, sobre a dificuldade na percepção de cores, e o médico realizou o Teste de Ishihara.
“Mas foi um diagnóstico que eu considero não preciso, porque o adequado é você comprar o Ishihara e ter o teste físico, impresso, com a calibragem adequada, só que alguns oftalmos imprimem e colocam numa apostila, o que pode causar alguma diferença [nas cores] devido à impressão. Aí ele só me disse: ‘Você é daltônico pro verde e pro vermelho’”
Quando tinha 55 anos de idade, Nelson passou por um teste psicotécnico em que uma das etapas consistia em distinguir luzes coloridas que iam mudando de posição. “Eu precisava falar [as cores] na ordem e eu me embaralhei todo porque tinha verde, amarelo e vermelho”, conta. Quando o aplicador questionou se ele tinha dificuldade com as cores, Nelson relatou que sim, mas que também estava passando por um período de estresse. O aplicador sugeriu, então, repetir o teste em outro dia.
Nesse meio tempo, Nelson tinha marcado uma consulta com um oftalmologista por outro motivo, a quem relatou a situação. O médico, então, abriu um manual e começou a perguntar as cores. Na metade do teste, veio a certeza: Nelson tem daltonismo – mas, assim como ocorreu com Thiovane, o médico não especificou o tipo.
E agora, como passar no exame psicotécnico? “A minha esposa ainda comprou uns lápis de cores – imagina, eu com 55 anos – para eu treinar, mas não adianta treinar, sabe? Aí eu voltei lá para fazer o exame e eu não sei se o cara relevou ou eu acertei por acaso, mas ele me aprovou”, diz Nelson.
Daniel ressalta que, ao perceber qualquer dificuldade na visão de cores, é importante consultar um oftalmologista e relatar a situação. Isso para investigar se a condição é genética ou relacionada a outra doença, já que o daltonismo pode ser adquirido ao longo da vida. “Os casos mais graves podem estar relacionados a doenças como distrofia de cones – uma distrofia na retina que vai evoluir com o passar do tempo”, exemplifica. Com um diagnóstico preciso, o oftalmologista também pode avaliar o uso de equipamentos e instrumentos ópticos que ajudem a melhorar a visão de cores. “Há óculos especiais com filtros que conseguem melhorar o detalhe das frequências que o paciente enxerga. Assim, ele consegue distinguir melhor as cores”, completa. Mas o uso dessas lentes, assim como de outras, deve ser receitado por um oftalmologista.
Dificuldades, estratégias e redes de apoio
Para driblar as dificuldades do dia a dia, as pessoas com daltonismo vão criando estratégias desde cedo. Thiovane relata que, nas aulas de Artes do colégio, pedia para “fazer desenhos surrealistas e explorar as cores e formas”. “Assim, eu pintava livremente, sem a obrigação de que as cores correspondessem ao que as outras pessoas percebiam”, completa. Já Nelson, nos primeiros anos de escola, tinha um aliado: um primo, colega de classe, que lhe alcançava os lápis de cor certos.
Os relatos das pessoas com daltonismo mostram semelhanças nas dificuldades em situações simples, como fazer compras ou se alimentar. Joaquim recorda o dia em que chegou a dar uma mordida em uma banana e só aí percebeu que ela ainda não estava boa para comer – estava muito verde. Thiovane relata a vez em que quase comeu um pedaço de pão mofado, porque não conseguia distinguir o mofo. Nelson explica que, quando vai a uma loja comprar presentes, precisa pedir ajuda para os vendedores para achar determinada cor.
Profissionalmente, o daltonismo também pode representar um desafio. Para Nelson, um episódio marcante aconteceu aos 18 anos, justo no seu primeiro dia de trabalho em um banco: pediram a ele que organizasse pastas em uma determinada ordem por cores. “Aquilo foi um castigo para mim, eu não conhecia ninguém, aí eu chamei um rapaz que também que era novo lá e pedi ajuda”, conta, ressaltando o constrangimento gerado pela situação.
Thiovane escolheu uma profissão em que o uso da cor é fundamental: a publicidade. No começo, ele sentiu bastante dificuldade nos softwares de design gráfico, já que, durante a seleção de tonalidade, nem todos especificam o nome ou o código da cor. Com o tempo, o mestrando foi descobrindo ferramentas que ajudam na autonomia, como uma “enciclopédia” das cores, que auxilia na escolha dos melhores tons e combinações.
Mas a pessoa com daltonismo também pode ter dificuldade na decodificação de gráficos ou mapas, por exemplo, em que o próprio uso da cor transmite determinada mensagem. “Em janeiro, em um telejornal de SC, foi mostrado um mapa para explicar quais pontos eram próprios ou impróprios para banho, e usaram só a cor [para transmitir a informação]. Eu não consegui diferenciar”, diz Thiovane.
Nesse caso, explica, é importante utilizar outra ferramenta além da cor, como símbolos, texturas ou números. Recomendações como essas estão sintetizadas em um guia de boas práticas sobre daltonismo para profissionais da indústria criativa, desenvolvido por Thiovane como trabalho de conclusão de curso em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
“É pensar: por que eu vou usar a cor? Pra classificar, pra agrupar? Será que todas as pessoas veem essa cor? Não que a cor não possa estar presente – ela deve –, mas é importante sempre adicionar uma alternativa”
Além do guia, o TCC de Thiovane acabou gerando um grupo no Whatsapp em que as pessoas com daltonismo compartilham informações e vivências. Após os grupos focais feitos para o trabalho, os participantes quiseram continuar essa troca e, assim, foi criado o grupo. “As pessoas se sentiram acolhidas de poder falar sobre cores de uma forma que os outros entendiam, e é muito massa, acabo tendo contato com outras barreiras que eu nunca tinha imaginado. É bem interessante no sentido de ser uma rede de apoio”, conta o mestrando. No seu perfil do Instagram, o publicitário também compartilha informações sobre o dia a dia com daltonismo.
Tecnologias assistivas
Existem muitas ferramentas que ajudam no dia a dia das pessoas com daltonismo, como aplicativos que identificam as cores usando a câmera do celular. Há, também, apps que permitem que pessoas tricomatas (isto é, com a visão normal de cores) consigam simular como as pessoas com daltonismo percebem as imagens.
Na UFRGS, pesquisadores do Instituto de Informática têm trabalhado no desenvolvimento de novas tecnologias para pessoas com daltonismo. A pesquisa mais recente, de 2022, foi um trabalho de conclusão de curso de Júlia Violato. A aluna criou um plugin que pode ser utilizado em qualquer videogame para recolorir as imagens conforme a necessidade do jogador daltônico.
Nos jogos, muitas vezes, as cores são usadas para transmitir determinada informação – por exemplo, o verde e o vermelho podem indicar a saúde de um personagem –, e o jogador com daltonismo pode ficar em desvantagem porque perde oportunidades ou demora mais para efetuar determinada ação. Com a recoloração efetuada pelo plugin, a desvantagem do jogador com daltonismo é diminuída.
Orientador de Júlia, o docente do Instituto de Informática Manuel Oliveira explica que a ferramenta atua independentemente do código-fonte do jogo. O plugin recolore o conteúdo do jogo que está na memória de vídeo, e o computador exibe, para o jogador, a imagem alterada. Além disso, a solução pode ser ativada e desativada rapidamente com um comando de teclado, o que permite que o jogador escolha em que momento deseja ou não usá-la.
Os pesquisadores aplicaram o plugin em 18 jogos, confirmando que uma única solução pode ser utilizada com sucesso em diferentes games. Também foram efetuados testes com nove pessoas com daltonismo, que, em muitas situações, preferiram as imagens recoloridas às imagens originais. Para os pesquisadores, isso demonstra a importância de o plugin poder ser ativado e desativado rapidamente durante o jogo, conforme a preferência do jogador.
Manuel conta que começou a trabalhar com essa temática quando um aluno de graduação relatou, durante as aulas, dificuldades em entender determinados conteúdos em função do daltonismo. O docente começou a pesquisar possibilidades e as considerou insuficientes. “Elas não resolviam determinadas questões ou eram muito lentas. Ou seja, você até poderia resolver ou melhorar o problema em imagens estáticas, mas com a minha formação em Computação Gráfica e o meu interesse em aplicações interativas, comecei a buscar mecanismos e desenvolver alternativas para preencher essa lacuna”, afirma.
Os primeiros trabalhos trataram sobre métodos de recoloração de imagens e modelos de simulação de daltonismo. Este “é o primeiro modelo na literatura que explica de maneira unificada como que os indivíduos tricomatas normais, os tricomatas anômalos e os dicromatas enxergam. Foi um mergulho na literatura: a gente foi ler sobre eletrofisiologia, fisiologia, etc., pegamos elementos de diversas áreas e construímos esse modelo computacional”, destaca Manuel.
O modelo também gerou uma extensão que pode ser aplicada ao navegador Mozilla Firefox. Com a extensão ativada, o usuário tem três opções: “Simulate”, que simula a informação de cores que uma pessoa com daltonismo recebe; “Daltonize”, que altera as cores para que pessoas com daltonismo possam distinguir os tons com mais facilidade; e “Simulate daltonize”, que simula a experiência de um daltônico com a função “Daltonize” ativada.
Manuel conta que gostaria de continuar trabalhando com o tema.
“Seria muito interessante se essa tecnologia fosse portada para celulares, porque aí o alcance é enorme, muita gente joga no celular”
Mas, para que isso aconteça, são necessários bolsistas de pós-graduação com dedicação exclusiva à pesquisa. “Isso é um negócio de muito mais fôlego, mas eu gostaria de continuar, porque é um assunto pelo qual eu tenho muito carinho”, finaliza.
Este texto foi originalmente publicado pela UFRGS de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.