Por Douglas Santos, da WWF-Brasil | Promover a convivência harmoniosa entre seres humanos e grandes felinos, como onças-pintadas e onças pardas, não é simples. Quando o cenário é o sul do Amazonas, região pressionada por crimes ambientais e conhecida como arco do desmatamento, esse desafio se multiplica. Visando reduzir recorrentes conflitos entre a população e esses animais naquele território, o WWF-Brasil reuniu no município de Apuí pequenos criadores de gado, indígenas e ribeirinhos em uma oficina. Além de receber orientações de especialistas, os participantes foram estimulados a cocriar formas e a encontrar caminhos para a coexistência pacífica.
O principal objetivo dessa ação, que ocorreu de 29 abril a 2 de maio desde ano, foi mostrar aos moradores locais que existem soluções possíveis. “Aqueles que abatem as onças têm consciência de que o que fazem não é o certo. Precisamos avançar além da conscientização e ter pessoas capacitadas para disseminar o conhecimento sobre técnicas capazes de reduzir os conflitos e promover a coexistência”, destaca Felipe Feliciani, analista de conservação do WWF-Brasil. “O que estamos fazendo é começar um trabalho que pode se tornar um grupo de respostas ao conflito com onças.”
Com o avanço do desmatamento para a ampliação da pecuária no sul do Amazonas, a área de floresta foi reduzida nos últimos anos e esses animais passaram a viver mais perto das comunidades. Além disso, um dos alimentos preferidos das onças, os catetos, também são consumidos pelos moradores da região. Com menos mata e menos presas disponíveis, os conflitos com as onças se intensificaram. É o que aponta um diagnóstico técnico feito pelo WWF-Brasil no começo deste ano.
Essa análise revelou ainda que o mais comum na região é a caça de retaliação, quando o felino é abatido por supostamente ter matado animais domésticos ou de rebanho – ou simplesmente por causar medo às comunidades. Tanto que existe no território a figura do “caçador profissional de onças”, contratado por fazendeiros para matar as que vivem nos arredores. Sob a condição de anonimato, um desses caçadores contou durante a realização do diagnóstico ter abatido 60 onças entre 2013 e 2021: 39 pintadas e 21 pardas. Outro revelou ter executado 136
Com uma região de mata fechada e de difícil acesso, os abates por retaliação são extremamente difíceis de serem documentados. Porém, segundo Marcelo Oliveira, especialista de conservação do WWF-Brasil, o número pode chegar à casa de milhares nos últimos anos. “Temos apenas o retrato de alguns relatos, e com base nesses relatos e com o contexto da região podemos estimar que o número total de mortes é alarmante”, diz.
“A gente escuta o pessoal aí dizer que a única solução é matar a onça. E para muitos acaba sendo a única saída, porque em mais de 20 anos que moro aqui ninguém nunca veio nos ensinar como lidar com a situação, muito menos nos escutar sobre como resolver o problema”, diz Milton Patrício da Silva, pequeno criador de gado em Apuí, que levou o filho, Igor Patrique da Silva, de 18 anos, para acompanhar a oficina promovida pelo WWF-Brasil. “Quero que o meu filho tenha acesso aos conhecimentos que eu não tive quando era mais novo”, frisa Silva.
Os 18 participantes dessa ação foram estrategicamente escolhidos para representarem as diversas comunidades locais, desde a Barra de São Manuel, passando por Vila do Carmo, Mata-Matá, até os limites com a Terra Indígena Tenharim, na Transamazônica – chegando a localidade denominadas Maravilha e Santo Antônio do Matupi. “No futuro, cada representante dessas regiões pode se tornar uma referência local para ajudar na solução e na redução de conflitos”, salienta Feliciani.
O WWF-Brasil selecionou para a oficina apenas proprietários rurais que possuem áreas regularizadas e dispostos a ser multiplicadores dos aprendizados. Mesmo morando em municípios vizinhos, alguns participantes, como os moradores da Barra de São Manuel, levaram mais de 18 horas em deslocamento para chegar até o local do evento.
Entre as técnicas de prevenção e redução de conflitos apresentadas estão: instalação de luzes abastecidas com painéis solares em pontos estratégicos, de sinos no gado e de cercas; adoção de melhores práticas de manejo do gado, como não deixar bezerros próximos à floresta e o descarte correto de carcaças, que podem atrair predadores. Os alunos também aprenderam a instalar e a manusear armadilhas fotográficas, essenciais para o trabalho de pesquisadores e para identificar quais animais circulam pela região.
O ponto de partida para essa troca de conhecimentos começa a mais de 2.000 quilômetros de Apuí, no município de Foz do Iguaçu, no Paraná. Lá são desenvolvidas as atividades do Projeto Onças do Iguaçu, que há mais de 15 anos lida diretamente com mais de 400 rancheiros do entorno do Parque Nacional do Iguaçu para reduzir os conflitos com onças-pintadas. Foi dali que vieram os professores do curso em Apuí, Thiago Reginato e Aline Kotz.
O sucesso do projeto está demonstrado no censo populacional de onças-pintadas. Entre 9 e 11 indivíduos dessa espécie viviam dentro do Parque Nacional do Iguaçu em 2009, número muito próximo da extinção completa. Mas, nos últimos anos, graças ao esforço coletivo de ações de coexistência, de manejo e de pesquisa foi registrado crescimento da população. O último censo, de 2020, estimou 24 animais no local.
Apesar de raros, existem relatos de ataques de grandes felinos a pessoas no sul do Amazonas. A proximidade da floresta com as comunidades e áreas de produção geram diferentes tipos de conflito. Evaldo Karô, indígena Munduruku e morador da Barra de São Manuel, foi ferido por uma onça-pintada quando tinha oito anos de idade. Ele lembra que estava próximo ao rio quando se afastou do pai e foi surpreendido pelas costas. Mesmo com esse histórico, Evaldo ainda acredita na convivência e quer ajudar na conservação da espécie. “Ela lá no espaço dela e a gente no nosso. Fomos nós que invadimos a casa dela e agora a gente precisa aprender a viver com ela”, destaca.
Além de apresentar técnicas de como conviver com onças próximas às propriedades rurais, o curso também procurou desmistificar alguns medos presentes na região. “O ser humano não faz parte do ambiente da onça-pintada. Nossa voz, nosso cheiro, tudo é estranho para ela. E o comportamento natural é que ela se afaste quando nota a nossa presença. Parte importante do nosso trabalho foi compartilhar conhecimento sobre o comportamento do animal e sobre o que fazer caso uma delas seja avistada”, diz Aline Kotz, responsável pelo engajamento no Projeto Onças do Iguaçu.
Existem diferenças entre os territórios, mas muitas técnicas de redução de conflitos são semelhantes e igualmente eficazes. Iguaçu está na Mata Atlântica, onde estimam-se haver apenas 300 onças-pintadas em toda a extensão do bioma. Lá, as propriedades próximas ao Parque Nacional do Iguaçu são menores e com uma mescla entre produção agrícola e agropecuária. Já na região de Apuí, a floresta amazônica é pressionada pelo desmatamento, o número de onças mortas é incerto, as dimensões das propriedades são muito maiores e o foco é quase exclusivo na pecuária.
“As técnicas que compartilhamos e cocriamos certamente ajudarão essas pessoas a se mobilizar para reduzir os conflitos. Tudo o que fazemos é muito novo, estamos ampliando o conhecimento em uma área pouco explorada e com diversas nuances”, avalia Thiago Reginato, responsável técnico pela coexistência do Projeto Onças do Iguaçu. “Trazer o grupo para construir soluções em conjunto foi fundamental para garantir o engajamento de todos na oficina e descobrir quais técnicas podem ser aplicadas com maior precisão para cada caso.”
A identificação de pegadas e de tipo de predador, além de instalação de armadilhas fotográficas, foram realizadas na prática durante as atividades. Ao localizar uma carcaça de um bezerro abatido, é comum que a onça-pintada seja a primeira suspeita, mas há vestígios que precisam ser analisados para saber o que causou a morte. “Existem diversos relatos de bezerros mortos por cachorros domésticos de grande porte, cobras ou outras causas. A onça é um animal oportunista e pode se alimentar da carcaça de um animal que não tenha sido abatido por ela”, relata Reginato.
A instalação de armadilhas fotográficas também auxilia na prevenção e identificação da fauna do entorno das propriedades. “Usar a tecnologia para ajudar na fazenda e na convivência com os animais é uma das coisas que mais me encantam. Além disso, vai ajudar a entender que outros animais dividem o espaço com a gente”, diz Igor Patrique.
Como uma espécie de prova, o grupo visitou uma trilha preparada com rastros de animais feitos com decalques de pegadas de onças-pintadas, onças-pardas e cachorros. E teve que identificar sinais de predação em uma simulação de encontro de carcaça de bezerro. Além disso, os alunos também aprenderam como preparar o local para a instalação das câmeras de monitoramento.
De acordo com Milton Patrício, morador da região desde o começo dos anos 90, essa é a primeira vez que alguém dialoga com ele sobre esse assunto. “Ninguém nunca tentou buscar uma solução, é sempre questionamento, fiscalização e nunca orientação. Nunca veio alguém aqui fazer como vocês fizeram, de perguntar quais são nossos problemas e se dispor a ajudar. Da forma como apresentaram dá sim para aplicar e ensinar os vizinhos”, afirma o pequeno criador de gado.
Maria Benedita Castro Martins, liderança jovem que levou quase 18 horas para chegar a Apuí, concorda. “Tem muito relato de onça lá na minha comunidade. Já pegaram cachorros dos vizinhos e, às vezes, vemos as pegadas. Para mim, ter estado aqui foi superimportante para poder levar esse conhecimento até minha comunidade e compartilhar tudo o que aprendi”, acredita.
Bené, como é conhecida, é indígena do povo Munduruku e moradora da Barra de São Manuel, localizada no município de Jacareacanga, na divisa entre os estados do Pará, Mato Grosso e Amazonas, onde os rios São Manuel e Juruena se encontram para formar o Tapajós.
Representando as 33 famílias da Assaga (Associação Agroextrativista do Aripuanã – Guariba), Rosivaldo Goés ressalta a importância da floresta viva para manter as atividades de extrativismo do óleo da copaíba, principal atividade da comunidade onde mora. “Precisamos da floresta saudável, com todos seus animais vivendo bem e em harmonia. Saber dividir o espaço com as onças é parte importante do nosso trabalho e certamente levarei aos meus colegas esse aprendizado”, comenta.
E os resultados já começaram a aparecer. “A técnica de soltar fogos de artifício em locais estratégicos já ajudou a espantar uma onça na minha propriedade. Não tenho mais visto os rastros dela e também já vou começar a fazer o manejo dos bezerros”, afirmou Milton, 15 dias após a realização da oficina.
“Estamos realizando o sonho de ajudar a conservar onças-pintadas na Amazônia. Sentir a energia do grupo, que se uniu e se ajudou durante todos esses dias, é algo extremamente poderoso e que certamente trará excelentes resultados no futuro”, agradeceu Reginato ao final da oficina.
A relação próxima com as onças-pintadas e o conflito intenso, além do abate de milhares de animais também gera situações delicadas, como a de um morador que criava um exemplar da espécie como animal de estimação no quintal de casa em uma comunidade a cerca de 100 quilômetros do centro de Apuí. Ele a alimentava com peixes e miúdos de porco.
Logo na chegada à cidade para a realização da oficina, a equipe do WWF-Brasil foi informada dessa história. A onça, segundo relato do morador, teria sido encontrada sete meses antes na beira de uma estrada ainda com os olhos fechados, indicando ter apenas alguns dias de vida. “Era uma situação extremamente delicada. Muito provavelmente a mãe dela foi morta e a onça precisava ser encaminhada para um centro especializado. Infelizmente, o animal não teve contato com o seu ambiente natural e é muito improvável que possa ser reintroduzido na natureza”, diz Feliciani.
O morador afirma ter avisado a Polícia Militar quanto à existência do animal e ter mantido contato com as autoridades locais para que ele fosse resgatado. Mas, de acordo com ele, a resposta era sempre a mesma: não havia equipes e equipamentos adequados para o transporte do felino.
Assim que confirmou que a onça-pintada estava sendo criada como animal de estimação, o WWF-Brasil informou o Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), órgão do ICMBio (Instituo Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade) e ligado ao Ministério do Meio Ambiente, que é o responsável pelo manejo e destinação desse tipo de ocorrência. No começo de junho, a onça foi encaminhada para um local adequado.
Muitas vezes, filhotes são retirados da natureza por pessoas que imaginam que foram abandonados e os direcionam aos centros de resgate ou autoridades locais. Porém, essa percepção é equivocada. Pode acontecer de a mãe apenas ter saído para procurar alimento e ficar horas ou até mesmo mais de um dia distante. O que não significa que o animal foi abandonado, é apenas o instinto natural.
Um exemplo vem do Projeto Onças do Iguaçu, que acompanhou um filhote de onça-pintada com aproximadamente três meses de vida que havia ficado sozinho por mais de oito horas até a mãe retornar. O WWF-Brasil apoia a campanha Deixe o Bicho no Mato, que visa conscientizar sobre a importância de não retirar animais saudáveis do ambiente natural.
Este texto foi originalmente publicado por WWF Brasil de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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