Povos originários, filhos de Hutukara, os Yanomami habitam a floresta amazônica há mais de mil anos e sofrem constantemente com as consequências do garimpo ilegal
Os Yanomami são povos indígenas que habitam a Região Norte da floresta amazônica, divisa entre Brasil e Venezuela. O território Yanomami, situado entre as margens do rio Branco (Roraima) e do rio Negro (Amazonas), tem 192 mil km². Pouco mais da metade desse território está no lado brasileiro da fronteira.
No Brasil, a Terra Indígena (TI) Yanomami tem cerca de 31 mil habitantes. Dos oito povos que habitam a terra indígena Yanomami, seis vivem em comunidades isoladas.
Quem são os Yanomami?
Yanomami vem da expressão yanõmami thëpë, que significa “seres humanos”, na língua indígena. Segundo sua cultura, os Yanomamis são todos filhos de Hutukara, descendentes de Omama e Paonakare. São um povo que mantém uma profunda conexão com a natureza.
Hutukara é o céu que desabou no princípio de tudo, no início dos tempos, formando o plano em que estamos. Representa o todo, é a Terra, a Mãe Natureza. Seu primeiro filho foi Omama, que deu nome às árvores e aos animais, lugares e montanhas. Nas palavras do líder e xamã Yanomami, Davi Kopenawa, Omama, o primeiro filho e rei da Terra, era um artista.
Em seu livro, A Queda do Céu, Kopenawa conta que Omama vivia sozinho com seu irmão, Yoasi, quando nenhuma mulher ainda existia. Muito tempo se passou, até que um dia Omama foi pescar e tirou do rio Thuëyoma, filha de Tëpërësiki.
Thuëyoma, então, se tornou a esposa de Omama. Os xamãs também a chamam de Paonakare, um peixe que se deixou capturar em forma de mulher. Sendo assim, Tëpërësiki, pai dos seres das águas (que são os donos da floresta e dos cursos d’água), trouxe para Omama as plantas que passaram a ser cultivadas nas roças indígenas.
A partir da união entre Thuëyoma e Omama nasceram os habitantes da floresta. Segundo a história, passada de geração em geração, é daí que os Yanomami vieram.
De acordo com pesquisadores, os ancestrais dos povos Yanomami existiam desde tempos longínquos e viviam praticamente isolados. Acredita-se que seus antepassados se estabeleceram nas regiões de nascente do rio Orinoco e do rio Parima por volta de 1000 anos atrás. O rio Orinoco nasce na Serra Parima, ao sul da Venezuela, a mais de 1000 metros de altitude.
Quando foi o primeiro contato com os Yanomami?
O contato dos não indígenas com os povos Yanomami começou a ocorrer somente a partir de 1910. Antes, os Yanomami mantinham contato apenas com outros indígenas. Entre a década de 1940 e 1960, as relações ficaram mais próximas. Católicos e evangélicos levavam suas missões até os indígenas, além das ações do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI).
No entanto, esse contato, que foi se tornando cada vez mais estreito, também levava uma série de doenças às aldeias. Sarampo, gripe e coqueluche são alguns exemplos das graves epidemias, que atingiram a população indígena.
Nas décadas seguintes, o contato com os Yanomami se intensificou. Projetos de expansão econômica levaram a uma série de obras, inclusive os primeiros garimpos, para perto das aldeias. Os resultados dessa aproximação excessiva foram epidemias, falta de saneamento e desordem social, que dizimaram grande parte da população indígena.
Quando começou a crise dos Yanomami?
Durante os anos 1970, políticas impostas pelo regime militar invadiram o sudeste da região habitada pelo povo Yanomami. Essas políticas envolviam obras da estrada Perimetral Norte e também programas públicos de colonização. A Perimetral Norte é uma rodovia federal, também conhecida como BR-210, que deveria conectar regiões desde Macapá até a cidade colombiana de Mitú.
O projeto, iniciado em 1973 no Amapá, previa aumentar o assentamento de famílias, além de fortalecer o desenvolvimento agrícola regional. Além disso, a estrada invadia e atravessava terras indígenas Wajãpi. Menos de 270 km de extensão (dos 2.586 km previstos) foram construídos, mas as dificuldades em atravessar a floresta e os conflitos com os indígenas, fez com que o projeto fosse abandonado em 1977.
Foi nessa época também que um projeto governamental descobriu jazidas de minérios no território indígena. O projeto Radam (Radar na Amazônia) foi criado com o intuito de pesquisar sobre os recursos minerais, os tipos de solo, a vegetação, o uso da terra e a cartografia de toda a região amazônica. Alguns anos depois, o projeto evoluiu e passou a englobar todo o território nacional.
Quando começou o garimpo ilegal nas terras dos Yanomami?
Desde que o governo militar brasileiro, em meados da década 1970, descobriu minérios na Amazônia, se iniciou uma verdadeira “corrida do ouro”. Garimpeiros passaram a invadir terras indígenas, numa atividade que causa degradação ambiental, conflitos e afeta não só a saúde, mas a integridade das comunidades indígenas locais.
O problema se agravou a partir dos anos 1980 e, em 1987, atingiu o seu ápice. Em três anos, de 30 a 40 mil garimpeiros, compelidos por políticas governamentais, invadiram o território Yanomami. Isso representava o quíntuplo da população indígena Yanomami da época. Cerca de 100 pistas de pouso clandestinas foram construídas. Além da violência sofrida pelos indígenas, a malária, introduzida amplamente em seu território, foi responsável por diminuir 15% da população.
Com o fim da ditadura militar em 1985, os anos seguintes foram marcados, também, pela redemocratização do Brasil. Sendo assim, houveram algumas tentativas de defesa desses e de outros povos indígenas.
Em 1988 foi instituída a Constituição que, no artigo 231, incluiu os direitos dos povos originários. Cerca de dois anos depois, teve início a Operação Selva Livre. O objetivo era desocupar o território Yanomami, retirando os garimpeiros da região. Em 1992, a demarcação da TI Yanomami foi homologada, assegurando 96650 km² de floresta de posse indígena permanente.
Entretanto, ao longo desse período, os Yanomami foram marcados por um modelo de vida totalmente insalubre, enfrentando doenças e sofrendo com altas taxas de mortalidade.
Além das questões sanitárias, essas comunidades também foram atingidas por outras sérias questões sociais. Políticas públicas, quando existentes, ficam à mercê de gestões políticas e são influenciadas por conflitos de interesses. Casos extremos de desnutrição, violência e exploração sexual e aliciamento de menores são parte da realidade trazida pelo garimpo em terras indígenas há décadas.
Quais são os problemas do garimpo ilegal?
O garimpo ilegal impacta direta e profundamente a vida dos povos indígenas. Além disso, a atividade também representa uma enorme ameaça ao meio ambiente. Um artigo, publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), analisou a atividade ilegal de garimpo em terras indígenas.
Sob a óptica dos crimes ambientais, das variantes do genocídio indígena e do ecocídio, os pesquisadores afirmam que além das graves consequências ambientais, o garimpo ilegal representa violação de direitos humanos e territoriais.
Além disso, a demanda pelo ouro no mercado mundial, em conjunto com a redução ou inexistência de fiscalização, são fatores que garantem a prática ilegal e as violações dos direitos mencionados anteriormente.
Quais os principais recursos minerais da Amazônia?
A região amazônica conta com cerca de 300 minas, com diversos recursos minerais. Entre eles: ferro, manganês, ouro, bauxita (alumínio), caulim, gipsita, fosfato, estanho, nióbio, minerais radioativos, molibdênio, cobre, níquel, zinco, chumbo, diamante, petróleo, gás natural e sais diversos.
Caulim e sais de potássio são matéria prima de fertilizantes, e são explorados ao norte da bacia sedimentar do rio Amazonas. Na região de Vila Nova, no Amapá, são explorados manganês, ferro, cromo, ouro e estanho. Em Pitinga, no Amazonas, estanho, nióbio, zircônio, tântalo, ítrio são extraídos.
Em Roraima, na região de Surucucus, a extração é de estanho e ouro. Fósforo, nióbio, titânio, bário e tório são retirados em Seis Lagos, no Amazonas. Em Aripuanã, no Mato Grosso, chumbo, zinco, cobre e ouro estão em processo inicial de exploração.
A Vale (anteriormente Vale do Rio Doce, empresa responsável por importantes desastres ambientais em Minas Gerais) é a proprietária de grande parte das jazidas de minério de ferro, situadas na Serra dos Carajás, na Amazônia paraense.
Já ao sul da bacia sedimentar do rio Amazonas, existe o garimpo de cobre, zinco, chumbo e molibdênio. O local, conhecido como Província Mineral do Tapajós, é o cenário de uma enorme degradação ambiental, causada principalmente pelo escoamento de lama para cursos d’água e a consequente contaminação das águas por mercúrio.
A última “fronteira mineral”
Segundo os especialistas, a Amazônia representa a “última fronteira mineral” relevante da Terra.
Por outro lado, a floresta amazônica é a maior floresta em pé do planeta, lar de inúmeras espécies de fauna e flora, dona de uma biodiversidade de extrema importância. A floresta amazônica deve ser preservada.
Apesar de existirem leis de preservação no Brasil, demarcação de territórios indígenas, unidades de conservação, unidades de manejo florestal, reservas ambientais, entre outros, o país sofre para combater quem comete práticas ilegais, violando as leis e degradando o meio ambiente.
Como funciona o garimpo de ouro na Amazônia?
De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o garimpo do ouro na floresta amazônica pode funcionar de dois modos. No primeiro caso o garimpo ocorre pelo método conhecido como “explotação aquática”.
A explotação aquática ocorre quando uma motobomba (um equipamento usado para movimentar fluidos, de um lugar para outro) é utilizada para fazer a sucção dos sedimentos no fundo dos rios. É como um aspirador submerso, que suga tudo o que estiver no leito dos rios. O conteúdo aspirado é depositado num reservatório (caixa concentradora) dentro das balsas (ou dragas), dispostas nos rios.
Uma vez dentro das balsas, os sedimentos recebem mercúrio. O mercúrio é utilizado para separar o ouro da lama e de outros resíduos. Entretanto, esse processo contamina a água e o solo, graças aos vazamentos da substância.
O mercúrio que permanece agindo nos sedimentos forma, junto ao ouro, uma espécie de amálgama (uma liga metálica) que, na sequência, é queimada, para que haja a separação do ouro puro. Com a queima, o mercúrio se transforma em vapor, é liberado na atmosfera, além de ser inalado pelo ser humano.
No segundo caso, a extração do ouro é feita a partir de duas motobombas. A função da primeira delas é desintegrar os sedimentos, jogando água em alta pressão, enquanto a segunda os suga, depositando-os dentro do reservatório. O procedimento com o mercúrio é o mesmo.
É possível perceber, através da imagem na sequência, grandes reservatórios de água, que são formados no processo de garimpo.
Próximo aos garimpos, são construídas também pequenas “vilas”, onde vivem os garimpeiros, além de pistas de pouso para aviões, para o transporte do ouro.
O que o garimpo causa na Amazônia?
O resultado obtido a partir do garimpo ilegal não contribui para o crescimento econômico da região. Além de grande parte do ouro ser repassado no mercado clandestino, os proprietários dos garimpos investem, geralmente, em atividades da agropecuária e no mercado financeiro.
Um artigo, publicado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), denunciou o processo de “esquentamento” do ouro, uma espécie de “lavagem de dinheiro”. O esquentamento insere no mercado o ouro extraído em garimpos ilegais. Esse ouro chega às instituições financeiras, joalherias e até a outros países, como se fosse resultado de uma atividade lícita.
Segundo a publicação, de 2019 a 2020 foram detectados cerca de 21 mil hectares de áreas nativas desmatadas na Amazônia, para a atividade de mineração. Dessa área, apenas 4% era composta por garimpos registrados e autorizados. Além disso, 5 mil hectares devastados pertencem à TIs homologadas.
Garimpo em áreas protegidas
Dados do MapBiomas mostram, também, que há uma concentração maior de garimpos em áreas protegidas, tais como os Parques Nacionais do Jamanxim, do Rio Novo e da Amazônia, todos no Pará. Além disso, também são foco do garimpo ilegal a Estação Ecológica Juami Japurá, no Amazonas, e a Terra Indígena Yanomami, em Roraima. No caso da TI Yanomami, a exploração tem crescido exponencialmente desde 2012.
Segundo o coordenador do MapBiomas, César Diniz, “o tamanho desses garimpos sobressai nos mapas, sendo facilmente identificável até por leigos”. Para Diniz, é surpreendente que esses garimpos ilegais subsistam ao longo dos anos, agindo de forma nada discreta. Ainda reforça que “sua existência e seu crescimento são evidências de apoio econômico e político à atividade, sem os quais não sobreviveriam, uma vez que estão em áreas onde o garimpo é proibido”.
Só em 2022, uma área 103 mil hectares foi invadida e degradada pelo garimpo ilegal. Essa área é composta exclusivamente por TIs e Unidade de Conservação (UCs). Para se ter uma ideia, o tamanho equivale a área aproximada da cidade de Belém, capital do Pará.
Consequências
São graves os impactos ambientais e sociais causados na Amazônia. As escavações e sucções que ocorrem, graças ao processo de garimpagem, alteram a estrutura dos rios, além de prejudicar a vida aquática. Quando a exploração esgota todos os recursos, os locais são abandonados, com a natureza totalmente destruída.
A poluição causada pela utilização do mercúrio é extremamente perigosa. Um estudo, realizado pelo Instituto Federal da Bahia (IFBA), mostrou que para cada 450 gramas de ouro extraídos do subsolo amazônico, quase 1 kg de mercúrio é despejado na água dos rios e no solo.
Além de toda a degradação ambiental, os indígenas são os principais afetados com a exploração ilegal da Amazônia. Seus territórios são continuamente invadidos, provocando conflitos, violência e mortes. Além disso, doenças são disseminadas, e todo o ecossistema fica comprometido pela ação do garimpo, resultando, inclusive, em fome e desnutrição da população indígena.
A devastação das áreas de floresta pelos garimpeiros, além de destruir o habitat e o bem estar de várias espécies de fauna e flora, impacta diretamente na cadeia alimentar. A caça é importante para a subsistência dos indígenas. A diminuição da quantidade de animais ocorre de forma severa, diminuindo a possibilidade de uma alimentação adequada, de acordo com a cultura indígena.
O que o mercúrio pode causar no corpo humano?
De acordo com a IFBA, o mercúrio é um poluente persistente, que atinge o meio ambiente e permanece ativo por cerca de 100 anos. O mercúrio circula por longas distâncias, contaminando e intoxicando, o que ou quem estiver pelo caminho. Com o tempo, ele se transforma em metilmercúrio, podendo ficar bioconcetrado, se acumulando na cadeia alimentar. O metilmercúrio contamina os peixes e outros animais marinhos, intoxicando os seres humanos por tabela.
Essa exposição causa sérios danos aos seres humanos, afetando os sistemas nervoso, digestivo e imune. Além disso, causa doenças cardíacas, pulmonares e nos rins. Em gestantes, fetos e crianças, atinge gravemente o sistema nervoso, podendo causar perdas de funções ou paralisias.
Além disso, o vapor do mercúrio, liberado na queima da amálgama, se inalado fica acumulado nos rins. Esse vapor altamente tóxico atravessa as barreiras hematoencefálicas e placentárias do corpo humano.
Essas barreiras são estruturas que regulam o transporte de substâncias no corpo humano, entre o sangue e o sistema nervoso central. Outra de suas funções é evitar a entrada de substâncias tóxicas na corrente sanguínea, o que não acontece no caso do vapor de mercúrio, devido à sua alta toxicidade. No caso da barreira placentária, além da gestante, o feto também é atingido.
Além de todas as dificuldades impostas pela atividade ilícita do garimpo, os povos originários ainda correm o risco de enfrentarem ainda mais violência e privação de direitos humanos, com outra ameaça: o marco temporal. Essa ameaça se estende também ao meio ambiente, fortalecendo atividades agropecuárias e mineradoras em regiões de conservação ambiental.
O que é marco temporal das terras indígenas?
O marco temporal é uma tese jurídica e, segundo essa tese, os povos indígenas têm direito apenas aos territórios que já ocupavam até a data da promulgação da Constituição, em outubro de 1988. Se não for possível comprovar que determinadas áreas já eram ocupadas antes dessa data, os indígenas podem ser expulsos de suas terras.
O processo é analisado pelo STF que, em setembro de 2023, votou pela rejeição da tese do marco temporal de terras indígenas. Já no Congresso Nacional, os parlamentares transformaram a tese em lei.
A lei do marco temporal torna real a ameaça à vida e a violação dos direitos indígenas. Além disso, a lei aumenta o potencial de danos ambientais irreversíveis nas áreas ocupadas pelos povos originários.
O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) analisou os impactos ambientais que o estabelecimento do marco temporal pode causar, principalmente no bioma amazonense.
O estudo apurou que, com a grilagem das TIs, a Amazônia Legal pode perder uma área de até 55 milhões de hectares de vegetação nativa. Além disso, atividades predatórias na região poderão causar a emissão de até 18.7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera.
Os impactos da degradação ambiental podem ser sentidos em todo o planeta. Não é uma questão isolada ou problema de apenas parte da população. É importante nos conscientizarmos, cada vez mais, da importância de se conservar o meio ambiente e consequentemente, preservar os direitos dos povos indígenas, que são os verdadeiros guardiões da natureza.