Cientistas descrevem circuito cerebral ligado ao estresse pós-traumático

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Pesquisa sugere que áreas do córtex trabalham em conjunto para produzir o medo aprendido após uma ameaça

Rato foi modelo em pesquisa que procurou compreender o processamento que o cérebro faz de ameaças à vida – Arte: jornal.usp.br

Os cientistas chamam de memória aversiva o medo que aprendemos a sentir a partir de uma experiência traumática. Já se sabia que ele é diferente do medo inato – aquele que vem inscrito nos nossos genes. Um trabalho recente demonstrou pela primeira vez que, para além dos genes, o medo aprendido difere do inato na forma como o cérebro o processa. Em artigo publicado na revista especializada Cerebral Cortex, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP descreveram um circuito composto de quatro áreas do córtex que é responsável por fazer um processamento complexo de ameaças de vida. Quando qualquer uma dessas áreas sofre uma lesão, a formação da memória de medo é prejudicada.

O córtex é a parte mais externa do cérebro. Sabe-se que está envolvido com geração de respostas elaboradas e cognitivas, como o aprendizado e a formação de memória. Quando a pesquisa começou, os cientistas do ICB queriam saber de que forma o córtex poderia trabalhar em conjunto com outra área do cérebro, o tálamo, para sustentar os processos de aprendizado de memória aversiva.

“Uma grande teoria sobre o funcionamento do córtex cerebral é de que ele tem um processamento dinâmico. Conversa o tempo inteiro com outras áreas do cérebro para sustentar os processos que ele trabalha. Então, a gente fez uma abordagem múltipla, de várias áreas ao mesmo tempo”, conta Miguel Xavier de Lima, pesquisador que realiza o pós-doutorado no Departamento de Anatomia do ICB e é um dos autores do artigo. “A gente abordou quatro áreas, mas provavelmente esse circuito é maior.”

Num primeiro momento, os pesquisadores do ICB fizeram experimentos com ratos para mapear as áreas do córtex que formam esse circuito. Duas dessas áreas se localizam no córtex pré-frontal, uma é chamada restrosplenial e outra é uma área visual. Essas quatro áreas se comunicam entre si e com outras áreas do cérebro já conhecidas por sustentar processos de aprendizado e formação de memória.

O modelo usado pelos pesquisadores é adotado como modelo explicativo para o estresse pós-traumático. Isso porque, após sofrer uma ameaça de vida – um ataque ou um grave acidente de carro, por exemplo – as pessoas tendem a reviver a memória do trauma quando se encontram em um contexto semelhante ao da experiência da ameaça – seja porque a vítima passa novamente pelo local onde foi atacada ou porque entrou em um carro pela primeira vez após se recuperar do acidente.

Modelo experimental

No caso dos ratos de laboratório, o trauma foi a exposição a um gato. “Nosso modelo de exposição ao predador cria uma situação muito aversiva ao animal. Fazemos ele encontrar um predador num determinado ambiente e, no dia seguinte, esse animal frequentar o mesmo local no qual ele encontrou esse predador”, diz Lima.

Na segunda etapa da pesquisa, os pesquisadores expuseram os ratos ao gato para analisar se as áreas do córtex que eles haviam identificado ficavam mais ativas no momento da ameaça de vida do que outras regiões próximas. Isso foi feito por meio da análise da ocorrência de uma proteína chamada Fos, que os cientistas tomam como marcador da atividade neural. Eles puderam notar que os neurônios daquelas quatro áreas do córtex estavam muito mais ativos do que os das áreas vizinhas.

No entanto, ainda faltava entender se o processo de formação de memória aversiva seria afetado caso alguma dessas quatro áreas sofresse uma lesão. Para isso, eles lançaram mão de um experimento comportamental. Separaram cinco grupo de cinco ratos. Cada grupo recebeu a injeção de uma droga em uma área diferente do cérebro para gerar uma lesão. Quatro dos cinco grupos tiveram a lesão em uma das quatro áreas do circuito cortical associado à memória aversiva. Os animais do quinto grupo tiveram a lesão em uma área motora que não integra o circuito.

Os animais, então, foram colocados em um aparato formado por três caixas, sendo dois compartimentos maiores e um corredor entre eles. Durante dez dias, os ratos foram colocados em um dos compartimentos e ensinados a atravessar o corredor para buscar comida no outro. “De início, o animal sempre sai com um comportamento que a gente chama de avaliação de risco, porque aquele ambiente é novo para ele, ele não está familiarizado. Então, ele vai investigar. Não tendo perigo, ele aprende que aquele ambiente é seguro para ele. Uma vez que ele aprendeu isso, o que ocorre lá pelo sétimo ou oitavo dia, na caixa onde ele encontrava comida, a gente coloca agora um gato”, conta Lima.

Após a exposição ao gato, os pesquisadores retornaram os animais ao biotério e limparam o aparato experimental para eliminar pistas de que o gato esteve lá. No dia seguinte, os ratos voltaram ao aparato no laboratório. Os cientistas, então, registraram comportamentos diferentes nos ratos que tinham lesões nas áreas integrantes do circuito cortical, quando comparados com os ratos do grupo controle.

Caminhos do medo

Foi a primeira vez na vida que os ratos submetidos ao experimento se depararam com um gato e todos eles apresentaram reações de medo – a mais comum, o congelamento motor. No entanto, no dia seguinte, quando foram expostos novamente ao ambiente, os animais do grupo controle apresentaram muito mais respostas defensivas do que os outros animais. Eles passaram a maior parte do experimento cheirando o ambiente, buscando avaliar o risco.

“Ele (o rato) está lembrando do que aconteceu no dia anterior. Então, não pode andar livremente, como se nada tivesse acontecido. Ele cria uma memória de medo”, explica Lima. “Ele tinha uma reação a um ambiente que inicialmente era neutro e que agora não é mais. Ele aprendeu que aquele é um ambiente perigoso. Esse é o medo aprendido”, completa Canteras.

Por outro lado, os animais com lesões em alguma das quatro áreas que estavam sendo investigadas fizeram pouca avaliação de risco e passaram muito mais tempo explorando o ambiente.

Segundo os pesquisadores, comportamentos tão destoantes sugerem que essas áreas do córtex cerebral ligadas ao aprendizado e à memória não organizam a resposta de defesa inata, já que tanto os animais lesionados quanto os do grupo controle responderam ao encontro com o gato com medo. Porém, as reações do dia seguinte indicam que elas têm envolvimento crítico no processamento da memória aversiva. Quando alguma é desativada ou inibida, interfere severamente na formação desse tipo de memória.

Canteras afirma que o resultado da pesquisa tem implicações no entendimento dos mecanismos que desencadeiam o estresse pós-traumático. “O que a gente mostra é que, quando o indivíduo é exposto a uma situação em que realmente está em perigo de vida, informações emocionais muito relevantes vão para um sistema cortical que processa e faz toda a análise do ambiente e, em cima daquilo, faz memórias. Essas memórias são importantes para manter o indivíduo vivo, mas podem ter um caráter patológico também. Elas podem ser reincidentes e reentrantes”, conclui o docente.



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