Dez perguntas sobre o zoneamento da cana

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Entenda qual era a influência do instrumento para a sustentabilidade do etanol e quais os impactos de sua revogação


Colheita de cana em Mato Grosso. Foto: Secom/MT

No último dia 6, Jair Bolsonaro e os ministros Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura) publicaram um decreto revogando uma proibição que vigorava havia dez anos à expansão do cultivo de cana em três regiões sensíveis: a Amazônia, o Pantanal e a Bacia do Alto Paraguai. O zoneamento atuava como peça-chave na garantia da sustentabilidade do álcool brasileiro. Tanto que a Unica, a União das Indústrias da Cana-de-Açúcar, se manifestou publicamente duas vezes contra tentativas do Congresso de revogá-lo. A última foi em março de 2018.

Um ano e meio depois, a Unica não apenas mudou sua posição quanto à revogação do zoneamento por decreto, como aplaudiu publicamente a medida. Segundo o novo presidente da entidade, Evandro Gussi, o zoneamento era “um passo atrás”, uma mera burocracia diante dos compromissos contra o desmatamento do Código Florestal (aquela mesma lei sob a qual o desmatamento na Amazônia cresceu 50% em 2019) e do RenovaBio, a nova política de biocombustíveis do governo. Esse argumento não encontra lastro nas regulações do RenovaBio.

O Observatório do Clima e o Instituto Socioambiental (ISA) compilaram as perguntas e respostas a seguir, sobre os motivos do estabelecimento do zoneamento e os riscos externos que o setor do etanol corre com sua revogação.

O que era o zoneamento da cana, derrubado pelo decreto do último dia 6?

O zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar era um extenso decreto, assinado em setembro de 2009, que estabelecia as regiões do país aptas à expansão da lavoura da cana com crédito rural público. Ele se baseava em estudo da Embrapa que identificou 64 milhões de hectares aptos para o plantio mecanizado da cana, excluindo três regiões: a Amazônia, o Pantanal e a bacia do Alto Paraguai (BAP), onde nascem os rios pantaneiros. As áreas identificadas correspondiam a quase oito vezes toda a área plantada com cana no país.

Por que o zoneamento foi feito e por que excluir a Amazônia e o Pantanal?

Na época em que o zoneamento foi estabelecido havia forte interesse do Brasil em tornar-se um líder na exportação de biocombustíveis; era a “diplomacia do etanol”, que acabou sendo abandonada após a descoberta do pré-sal. A União Europeia havia estabelecido uma diretriz para a ampliação do uso de biocombustíveis em 2009, mas havia preocupação em garantir que estes não competissem com culturas alimentares (caso das plantações agroenergéticas na África) nem gerassem devastação ambiental (como o biodiesel de dendê da Indonésia, muito ligado ao desmatamento). O Brasil adotou o zoneamento como diferencial competitivo, excluindo regiões que eram frágeis ambientalmente, mas que também apresentavam desafios logísticos ou tinham clima inadequado para a cana.

Mas essas regiões já têm áreas desmatadas. Não se pode plantar nelas?

A cana não foi banida dos lugares onde já era plantada, inclusive em várias regiões da Amazônia, como o Acre, o Pará e o Amazonas. O que o zoneamento estabeleceu foi que não se poderia pedir financiamento público para expandir o cultivo e criar novas usinas nas três regiões que ficaram fora do zoneamento, nem em zonas de declividade superior a 12º, que demandariam o uso de trabalho degradante (bóias-frias).

Três Estados da Amazônia Legal, Mato Grosso, Tocantins, e Maranhão, concentram áreas significativas de cana plantadas em áreas compreendidas no bioma de cerrado (incluídas no zoneamento). Em 2015, segundo dados da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar) esses Estados contavam com 300 mil, 35 mil e 47 mil hectares plantados de cana, respectivamente. O Pará vem na sequência, com 16 mil hectares, seguido do Amazonas, com 4,4 mil.

Lembre-se: a restrição não é aos Estados amazônicos, a chamada Amazônia Legal (onde o zoneamento identificou 8,7 milhões de hectares passíveis de expansão), mas sim ao bioma Amazônia – que, de resto, é em geral chuvoso demais para produzir cana com qualidade.

Quem perdeu com o zoneamento?

Muito pouca gente. De acordo com este mapa elaborado pela Embrapa, as regiões excluídas do zoneamento tinham apenas 12 usinas quando o decreto foi editado – menos de 3% do total de usinas do Brasil. Interesses tentavam de tempos em tempos derrubar o zoneamento no Congresso. A última tentativa ocorreu em março do ano passado, mas naufragou após críticas veementes de 60 entidades ambientalistas, de ex-ministros do meio ambiente e da Unica (União da Indústria da Cana-de-Açúcar), principal entidade empresarial do setor. Você leu certo: até março de 2018, a indústria da cana era a favor da manutenção do zoneamento.

Há necessidade de reverter o zoneamento da cana para acomodar a expansão da produção?

Não. As lavouras de cana estão espalhadas, hoje, por mais de 10,8 milhões de hectares no Brasil, de acordo com a Unica. O zoneamento agroecológico identificou mais 64 milhões de hectares passíveis de expansão, dos quais 19,3 milhões possuem alta aptidão para a cultura. A produção prevista de etanol no Brasil é de 54 bilhões de litros até 2030, para cumprir com o compromisso do país no Acordo de Paris.

Supondo que não haja ganhos de produtividade e uma relação linear entre a produção total de etanol atual (30 bilhões de litros em 2015/2016) e a área cultivada, seriam necessários 11 milhões de hectares adicionais para dobrar a produção, excedendo, assim, a meta de Paris. Não há necessidade de um único hectare de terra amazônica ou pantaneira para cana-de-açúcar. Considerando os ganhos de produtividade e a estimativa atual para expansão, esse número será muito menor.

O zoneamento era engessado demais?

Como qualquer política, o zoneamento da cana estava sujeito a atualizações. Por exemplo, pouco tempo depois de ele ter sido publicado, entrou no mercado uma nova tecnologia que permite cultivar mecanicamente em aclives de até 18º. Segundo alguns técnicos, isso expandiria a área apta para a cana em mais de 10 milhões de hectares. O jeito de incorporar tal mudança era rever o decreto, não revogá-lo.

Se a cana seria expandida para áreas já desmatadas, por que os ambientalistas dizem que isso causaria mais desmatamento?

A primeira e mais simples explicação é o efeito-cascata sobre o gado. As culturas de commodities de alto rendimento, como a cana e a soja, elevam muito o preço da terra. Pecuaristas e grileiros podem se sentir estimulados a abrir mais áreas florestais para “pastagem” e vendê-las por grandes quantias para produtores de cana, e depois seguir para novos terrenos recém desmatados.

Antes da moratória da soja, em 2006, esse “vazamento” de desmatamento acontecia em várias cidades com plantações de soja, em Estados como Mato Grosso e Pará. Não há acordo parecido para a cana, apesar de o presidente da Unica e assessores do Ministério da Agricultura estarem usando a legislação do programa RenovaBio como argumento (veja abaixo).

Um novo vetor de desmatamento dificultaria a aplicação da lei na Amazônia, onde estudos mostraram que o cumprimento do Código Florestal já é muito baixo e a maior parte do desmatamento é ilegal. Além disso, a nova infraestrutura precisaria ser instalada para processar e transportar a nova safra. Estes são, eles mesmos, fatores de desmatamento.

Mas a perda de floresta não é o único problema da revogação: uma nota técnica publicada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi aponta que a cana é uma cultura com alta demanda por água, podendo agravar os problemas de fluxo hídrico das regiões na borda da floresta, onde estão as terras degradadas. Além disso, o vinhoto usado para fertilizar os canaviais contamina os rios com nitrogênio em excesso e as queimadas para o cultivo da cana criam mais um elemento de risco de incêndios florestais numa região onde o regime de fogo já mudou.

O presidente da Unica, Evandro Gussi, afirma que a expansão da cana estaria regulada pelo RenovaBio, que não admite desmatamentos adicionais. Isso não basta?

O argumento é falso. A produção de cana de fato atende ao RenovaBio, a nova política nacional de biocombustíveis, cuja lei foi sancionada em 2017 pelo então presidente Michel Temer. O objetivo do RenovaBio é atender às metas do Acordo de Paris de aumentar a proporção de etanol e biodiesel na matriz energética brasileira. Nenhum produtor é obrigado a aderir, embora a política crie metas de redução de emissões para as distribuidoras, que tendem a pressionar seus fornecedores por certificação.

Ocorrem duas coisas, porém. Primeiro, a Lei do RenovaBio não diz absolutamente nada sobre desmatamento. O único instrumento da nova política que toca nesse assunto, regulamentando parte da lei, é a Resolução 758/2018 da Agência Nacional do Petróleo e Biocombustíveis, que regula a certificação da produção de etanol e biodiesel.

Em seu artigo 24, a resolução afirma que as unidades certificadas não poderão ter desmatamento após 2018 (data em que a resolução entrou em vigor), mas faz duas ressalvas fundamentais: primeiro, só se considera para a certificação a área cultivada com culturas energéticas dentro da propriedade (parágrafo 2º). Ou seja, se um fazendeiro tem, digamos, 10 mil hectares e separa 1.000 hectares para produzir cana ou soja para biodiesel, mesmo assim ele poderá desmatar o restante de sua propriedade dentro dos limites do Código Florestal. Mas não para por aí: a certificação também pressupõe que a produção elegível para certificação, no caso da cana, esteja nas áreas estabelecidas… pelo zoneamento da cana. Aquele mesmo que foi revogado.

Ou seja, criou-se uma lógica circular, na qual a suposta garantia ambiental que embasou a revogação do zoneamento depende do próprio zoneamento revogado. É como querer contratar um estagiário e exigir três anos de experiência.

Por que a mudança prejudica os biocombustíveis ao invés de ajudar?

O etanol brasileiro era tido e havido como o biocombustível mais sustentável do mundo. No ano passado, o país exportou mais de 950 milhões de litros para as Américas, 660 milhões para a Ásia e quase 50 milhões para a Europa. A boa fama se deve em parte ao fato de as emissões de gás carbônico do ciclo de vida da cana serem muito baixas (quase todo o carbono emitido pela queima no motor do carro é sequestrado de novo pela cana ao crescer), diferente do álcool de milho americano, cuja eficiência de carbono é bem mais baixa.

Além disso, a cana ocupa área relativamente pequena no país e vinha crescendo essencialmente sobre pastagens abandonadas no Sudeste e Centro-Oeste. Por isso, neste ano, quando o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) lançou um relatório especial sobre uso da terra que fazia críticas aos biocombustíveis em seu sumário quanto à competição com alimentos e florestas, a diplomacia brasileira interveio para explicar que nem todo biocombustível era assim – e conseguiu mudar o texto.

O zoneamento era o salvo-conduto de sustentabilidade do álcool brasileiro – e por isso ele era defendido pela Unica, que mudou de posição de repente. Sem o zoneamento, o álcool brasileiro poderá voltar a frequentar as listas sujas de biocombustíveis, prejudicando as exportações.

Mas não é melhor ter cana na Amazônia do que energia de hidrelétricas como Belo Monte?

Esse argumento foi utilizado por assessores do Ministério da Agricultura para justificar a revogação do zoneamento. Ele não faz o menor sentido, uma vez que a energia de Belo Monte não fica na Amazônia – é despachada para o Sistema Interligado Nacional – e a cana plantada na Amazônia não seria usada para gerar eletricidade, e sim para abastecer carros.

As duas alternativas geram muito impacto e pouca riqueza local. Belo Monte fez a criminalidade explodir em Altamira e prejudicou todas as populações que viviam da pesca na Volta Grande do Xingu. A cana é uma cultura intensiva em terra e capital. Pequenos produtores tendem a ser prejudicados por sua expansão, seja pela valorização das terras ou pela concentração fundiária que ela induz.



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