“Foi um dia difícil. Estamos no meio de um combate contra um incêndio em uma das comunidades mais emblemáticas do Pantanal. Pela primeira vez em nove meses, o fogo está chegando perto das casas e ameaçando a vida das pessoas”, contou André Luiz Siqueira a esta jornalista, em um apressado áudio de Whatsapp.
O diretor-presidente da ONG Ecoa estava em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, dando apoio logístico para cerca de vinte bombeiros que lutavam contra as chamas na comunidade da Barra do São Lourenço, na beira do Rio Paraguai.
No mesmo momento, Denir Marques estava resgatando sua mãe, de 80 anos, praticamente arrastando-a para fora de casa. “O fogo estava perto e o vento estava muito forte, e ela não queria sair da casa. Por sorte os bombeiros conseguiram salvar a casa da minha mãe”, ele conta.
As cenas descritas por Siqueira e Marques aconteceram em 22 de setembro. Ninguém ficou ferido, graças ao esforço conjunto de brigadistas voluntários que trabalharam lado a lado com bombeiros profissionais dos órgãos ambientais federais e estaduais.
Mais de duas semanas depois, no entanto, o fogo continuava queimado do outro lado do Rio Paraguai, na Serra do Amolar. De acordo com a ONG Instituto do Homem Pantaneiro (IHP), as chamas só foram controladas na metade de outubro, depois que 90% da área foi consumida pelas chamas (120 mil quilômetros quadrados).
O Pantanal é a maior planície inundável do mundo e se estende entre as fronteiras do Brasil, Paraguai e Bolívia. O Brasil abriga a maior fatia desse habitat, com o ecossistema se espalhando sobre os estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
A Barra do São Lourenço fica no coração deste território rico em biodiversidade — exatamente na divisa entre os dois estados brasileiros, ao lado do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a apenas alguns quilômetros da fronteira com a Bolívia. A comunidade, composta por apenas 25 famílias, fica no encontro dos rios Cuiabá e Paraguai — uma área de difícil acesso, onde só é possível chegar após uma viagem de 5 horas de barco, saindo da cidade de Corumbá.
“Algumas pessoas dizem que somos loucos de viver aqui, no meio do mato. No período de cheia, tem muito mosquito. Mas para mim, ser pantaneira é amar cada pedaço de pau, cada árvore, cada pássaro. É me sentir parte do Pantanal”, diz Leonida Aires de Souza, presidente da Associação de Mulheres Renascer e moradora da Barra do São Lourenço.
O profundo senso de pertencimento, explica Siqueira, é fortemente ancorado na origem da comunidade. “A Barra do São Lourenço é um caldo cultural, que tem origem nos descendentes dos escravos negros, dos indígeans Guató e dos sobreviventes da Guerra do Paraguai. Eles são a população tradicional do Pantanal”, afirma.
A guerra a que Siqueira se refere foi o pior conflito armado da história da América do Sul, que ocorreu entre 1864 e 1870 e colocou de lados opostos as tropas do Paraguai e da Tríplice Aliança, formada por Brasil, Argentina e Uruguai. Os Guató, por sua vez, estão entre os habitantes originais do Pantanal, junto com os indígenas Bororo, Piaguá e Kayapó.
Hoje em dia, os Guató vivem em duas terras indígenas. Uma está localizada na Ilha Ínsua, a poucos quilômetros da Barra do São Lourenço, e não foi atingida pelo fogo. A outra terra indígena é a Baía dos Guató, localizada a cerca de 200 quilômetros dali, e cuja área foi praticamente destruída pelos incêndios deste ano.
“A minha avó era Guató”, diz o morador Denir Marques, com orgulho. Apesar da mistura de culturas, algumas tradições indígenas continuam fortes em São Lourenço, incluindo o artesanato no qual uma planta aquática chamada aguapé é trançada em cestas e chapéus. Essa arte, junto com peixes e mariscos, é vendida para os turistas que sobem o Rio Paraguai, vindos de Corumbá. Na época da seca, as famílias plantam melancias, milho e mandioca. Durante a enchente, eles usam uma técnica chamada jirau para aumentar a altura das casas com estruturas de madeira, a fim de escapar da água do rio. Agora todos se perguntam como os estragos deixados pelo fogo vão afetar sua subsistência e suas atividades.
montanhas e as planícies alagadas do Pantanal estão intrinsecamente ligadas ecologicamente. Durante a estação das cheias, por exemplo, as onças pintadas se deslocam das áreas baixas para a Serra do Amolar.
No Pantanal, todos seguem o ritmo dos ciclos anuais de enchentes (que ocorrem de abril a junho) e vazantes (que acontecem de julho a dezembro).
No mesmo período do ano em que os moradores da Barra do São Lourenço elevam suas casas, os animais do parque nacional deslocam-se das áreas alagadiças para as terras altas da Serra do Amolar.
“Noventa por cento do parque nacional é formado por planícies que alagam durante a estação chuvosa. Então eles [os animais selvagens] vão para as montanhas. Quando fica mais seco, eles voltam para o parque. Isso tudo funciona de uma forma muito equilibrada. É por isso que tanto a Serra do Amolar como o parque nacional são considerados Patrimônios Naturais da Humanidade”, afirma Letícia Larcher, doutora em Ecologia. De acordo com o Corpo de Bombeiro Militar do Mato Grosso, 19.600 hectares já queimaram no parque, o que representa 14% do território.
Mamíferos grandes e com vastos territórios, como as onças-pintadas (Panthera onca), são os que mais costumam se deslocar de um lugar a outro. Como resultado, a Serra do Amolar registra a segunda maior densidade de onças do Pantanal; em determinada área da serra, há uma média de dez onças a cada 100 km². Porto Jofre, 100 quilômetros a nordeste dali, ostenta a maior densidade do mundo, com 12,3 onças para cada 100 km².
“Felizmente, não encontramos nenhuma onça morta. Elas devem ter fugido para as áreas protegidas do Chaco boliviano”, sugere Larcher, coordenadora-técnica do IHP, a organização que administra as quatro Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs) que protegem a Serra do Amolar — todas as RPPNs foram atingidas pelo fogo.
Além das onças-pintadas, a Serra do Amolar é a casa de outros mamíferos ameaçados de extinção, como a anta (Tapirus terrestris), a queixada (Tayassu pecari), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), o tatu-canastra (Priodontes Maximus) e a ariranha (Pteronura brasiliensis), assim como o mutum-de-penacho (Crax fasciolata). Destes animais, a ariranha está sob maior risco, sendo classificada como ameaçada de extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Anta adulta resgatada de uma área queimada na Serra do Amolar. O animal, apresentando queimaduras nas patas e na barriga, foi encontrado por ribeirinhos em uma lagoa a 180 km de Corumbá.
Ao longo das últimas semanas, cerca de cinquenta homens lutaram contra o fogo. Mas as chamas, levadas pelo vento, eram fortes o suficiente para saltar sobre linhas de contenção de 40 metros de largura — áreas queimadas intencionalmente pelos bombeiros para negar ao fogo material combustível e impedir seu avanço.
“Eu tenho 53 anos e nasci aqui. Eu já vi secas, mas nunca tinha visto um fogo dessa intensidade”, diz Leonida Aires de Souza. “É a primeira vez desde 1974 que não tem enchente”, acrescenta Marques.
De acordo com a bióloga Débora Calheiros, as chuvas têm estado abaixo da média desde 2010 — com 2019 e 2020 especialmente secos. Na sua avaliação, o Pantanal já pode estar sofrendo os impactos do aquecimento global.
“Nesta parte do Brasil, as mudanças climáticas tendem a deixar o clima mais seco, com chuvas mal distribuídas. Diante disso, o governo federal deveria estar trabalhando com prevenção, mas está fazendo exatamente o contrário. O governo desmantelou a política nacional de meio ambiente e até extinguiu a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas”, observa a pesquisadora Calheiros, que vêm estudando a ecologia dos rios e das cheias do Pantanal há 30 anos.
Larcher sugere que os incêndios sem precedentes são resultado do fracasso do governo no combate aos crimes ambientais pelo Brasil, especialmente na Amazônia e no Cerrado; o Pantanal é uma zona de transição entre este dois biomas. “O desmatamento da Amazônia reduz a quantidade de chuva que chega ao Pantanal. E há áreas do Cerrado, que abriga as nascentes dos principais rios do Pantanal, que estão totalmente devastadas. Tudo está conectado”, afirma Larcher.
Acrescente a todos estes problemas a irresponsabilidade e até ações criminosas de grileiros e fazendeiros — que supostamente iniciaram vários dos incêndios do Pantanal — e o Brasil terá a fórmula do desastre, que pode se intensificar no futuro.
“Todo mundo sabe que desde 2019 não está chovendo, e mesmo assim as pessoas estão colocando fogo para renovar as pastagens. Mesmo com o decreto [do governo Bolsonaro] proibindo o uso do fogo. Isso é criminoso”, diz Siqueira, da Ecoa.
No Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, pecuaristas costumam queimar as pastagens degradadas para renovar o capim e reduzir as pragas de insetos. Mas a queima para fins agrícolas só é permitida na estação chuvosa, e apenas com autorização dos órgãos ambientais estaduais. Em julho deste ano, como resultado da pressão internacional, a proibição das queimadas foi reforçada por um decreto federal que baniu o uso do fogo por 120 dias no Pantanal e na Amazônia.
O decreto, no entanto, não teve efeito prático. De julho a setembro, o número de focos de incêndio no Pantanal aumentou 210%, saltando de 5,071 em 2019 para 15,725 em 2020, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Estima-se que mais de 3.3 milhões de hectares do Pantanal tenham sido atingidos pelas chamas neste ano. Isso representa mais de 20% do bioma, e é o equivalente a mais de 20 vezes o município de São Paulo. Estudos mostram que a maior parte dos incêndios teve origem em propriedades privadas.
Mesmo quando os fogos tiverem cessado, seus efeitos devem ser sentidos por um longo tempo pelas pessoas e animais. O morador Denir Marques, por exemplo, ainda lembra como se sentiu enquanto lutava contra as chamas na sua comunidade. “Nós passamos dias e noites combatendo o fogo. Aqueles que não conseguiam mais aguentar deitavam no barranco, na beira do rio, para descansar um pouco. Eu senti mal-estar, dor de cabeça, porque a fumaça era muito forte”.
Um estudo da Universidade Federal do Alagoas revelou que o ar em Cuiabá, capital do Mato Grosso, alcançou concentrações de dióxido de carbono 15 vezes maiores do que o aceitável para a saúde humana.
“A área da Barra do São Lourenço se tornou o epicentro dos incêndios, e a fumaça estacionou ali por mais de 60 dias. Eles [os bombeiros e os moradores] não conseguiam enxergar 100 metros à frente. Ninguém sabe quais serão os efeitos para a saúde, especialmente durante uma pandemia, em uma comunidade que sempre foi esquecida pelos governos e que tem um precário acesso ao sistema de saúde”, preocupa-se Siqueira.
A qualidade do ar não é a única preocupação. De acordo com a pesquisadora Calheiros, a água da região deve em breve ficar sem condições de consumo. O excesso de matéria orgânica, decorrente da cinzas, acelera a proliferação de bactérias que são danosas à saúde humana. “Quando a chuva começar, provavelmente no final de outubro, [as condições] vão piorar, já que mais cinzas serão drenadas para dentro dos lagos e pequenos rios, e então para os rios maiores. O governo precisa agir com urgência para levar água potável e cloro para estas comunidades impactadas”.
De acordo com Calheiros, a contaminação da água também deve levar à mortandade de peixes. Isso iria agravar a crise econômica que começou em março com a pandemia, que afastou os turistas da região. Os moradores da Barra do São Lourenço ganham a vida vendendo mariscos, peixes e artesanato para os visitantes. Agora, apenas quatro das 17 participantes da Associação de Mulheres Renascer continua trabalhando com artesanato. “Estamos tentando recuperar a Associação para que nossas colegas possam viver do nosso trabalho de novo, do nosso artesanato. Esse é o nosso modo de viver, é herdado dos nossos ancestrais guatós”, diz Leonida Aires de Souza.
A mesma incerteza quanto ao futuro se aplica à vida selvagem. Os animais que escaparam do fogo terão que sobreviver em um ambiente inóspito, com águas potencialmente contaminadas.
“O fogo queimou tudo, desde as plantas até as colônias de formigas e cupins. Mesmo que as plantas fiquem verdes de novo com as chuvas, muitas peças deste habitat estarão faltando para que tenhamos um ambiente equilibrado. Ainda não sabemos o que vai acontecer com estes animais, porque não temos nenhum estudo que avalie o impacto de um incêndio desta dimensão”, conclui Larcher.
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