Incêndio na beira do rio

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Refúgio de plantas e animais, florestas junto aos rios se tornam suscetíveis ao fogo e são ameaçadas pela agricultura

Em 2017, um grande incêndio na chapada dos Veadeiros, em Goiás, queimou 80% da área do parque. Muitas das florestas ripárias, que acompanham os rios, foram parcialmente destruídas. Essa cobertura vegetal que serve de hábitat e corredor de deslocamento para uma diversidade de animais caiu de 90% para 20% nas áreas mais afetadas, segundo estudo publicado em dezembro na revista Journal of Applied Ecology. O fogo é parte natural do ecossistema no Cerrado, mas com extensão e frequência menores. Em condições normais, as matas ripárias resistem graças à umidade do ambiente e de suas plantas. Mas essa proteção vem sendo reduzida – nesse bioma e em outros – por falta de manejo, mudanças no regime de chuvas e pelo avanço da agricultura, de acordo com estudos recentes.

“As imagens revelaram que o fogo matou 52% das árvores adultas e 87% das jovens que cresciam na beira dos rios”, explica o biólogo Bernardo Flores, autor do artigo e pesquisador em estágio de pós-doutorado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A avaliação foi baseada em imagens da plataforma Google Earth que, com resolução de 0,5 metro (m), permite identificar danos até na copa de uma árvore, quando se compara fotos antes e depois do incêndio, na chapada dos Veadeiros. Em campo, o grupo estudou 30 florestas queimadas e seis áreas não afetadas pelo fogo, que serviram como controle.

“Algumas das florestas devem se recuperar, mas é possível que outras permaneçam aprisionadas por décadas em um estado de vegetação aberta”, ressalta Flores, referindo-se a uma vegetação esparsa e sem árvores frondosas. Os pesquisadores agora monitoram as áreas degradadas para verificar sua recuperação e detectar mudanças na composição de espécies. Alguns dos locais queimados foram invadidos por plantas exóticas que crescem mais depressa, como o capim adotado pela agropecuária para alimentar o gado e plantas oportunistas, como cipós, trepadeiras e samambaias nativas, que podem ter mais de 1 metro de altura. Essas espécies aumentam o risco de novos incêndios e competem com as árvores, dificultando sua germinação e crescimento.

Algumas áreas de florestas podem se transformar em veredas, um tipo de vegetação campestre em áreas alagadas, onde crescem as palmeiras conhecidas como buritis, cuja produção de frutos aumenta depois de um incêndio. As veredas, no entanto, não desempenham as mesmas funções ecológicas das florestas ripárias, que são refúgio de vários animais típicos do Cerrado, como o tamanduá, a jaguatirica e a onça-pintada, além de ser moradia permanente de primatas e aves. As florestas ao longo dos rios também realizam serviços ecológicos essenciais — como purificar a água, evitar a erosão do solo, reter minerais, fornecer alimentos para animais e absorver carbono no tronco das árvores.

“Surpreendentemente, as florestas mais impactadas foram aquelas que alagam durante a estação chuvosa”, diz Flores. Nessas florestas, a superfície do solo fica repleta de raízes que crescem acima da superfície da água, adaptadas para absorver oxigênio e reter nutrientes da correnteza. Quando termina a época das chuvas e o solo seca, essas raízes entram em combustão com facilidade. Quando há um grande incêndio, elas podem espalhar o fogo pela camada de húmus cheia de raízes que forma um tapete – o chamado fogo de turfa, um dos mais difíceis de combater, porque se alastra de forma invisível ou deixa o solo em brasa.

O efeito da agricultura

O fogo, porém, não é a única ameaça para as florestas ripárias. Um estudo feito em Mato Grosso sugere que a agricultura reduz a diversidade de árvores e altera a composição florística.

“As faixas de florestas ripárias que fazem fronteira com as plantações são particularmente empobrecidas em espécies arbóreas quando comparadas a florestas desse tipo que ficam dentro de uma área florestal”, diz o biólogo Leonardo Maracahipes-Santos. Autor de artigo publicado na revista Biological Conservation em 20 de novembro, ele é estudante de doutorado no campus de Nova Xavantina da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). As áreas degradadas também favorecem a proliferação de espécies colonizadoras, que crescem rápido, mas têm madeira menos densa – por isso absorvem menos carbono e competem com as outras espécies de árvores, diminuindo a biodiversidade.

Os pesquisadores compararam 10 áreas com extensão entre 120 e 210 m na fazenda Tanguro, no município de Querência, na região de transição entre o Cerrado e a Amazônia, onde a floresta é menos densa e tem árvores mais baixas. O estudo indica que a faixa mínima de 30 m de vegetação junto a corpos d’água, definidos pelo Código Florestal para proteger as florestas ripárias que ficam em rios com até 10 m de largura, não é suficiente.

“Estudamos florestas ripárias com largura mínima de 40 m, que fazem fronteira com áreas de cultivos e observamos que elas estão sob forte pressão de degradação”, afirma Maracahipes-Santos. Os resultados indicam que seria necessária uma faixa de floresta mais larga do que as exigidas atualmente pela lei para garantir a manutenção da diversidade e da composição de espécies de plantas.

Um aliado na recuperação de áreas degradadas é a anta, que frequenta a floresta na beira do rio durante o dia, onde encontra uma fartura de frutos e plantas, e à noite se desloca para áreas abertas distantes. Assim, carrega no trato digestivo grande quantidade de sementes que, ao defecar, ajudam a recuperar as florestas ripárias degradadas nas cercanias, como descrito em artigo de uma equipe do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia que trabalha na mesma região, publicado em 2019 na revista Biotropica.

Fogo natural

Quando não é causado por ação humana, o fogo no Cerrado começa com a queda de raios no início da estação chuvosa, e é importante para o ciclo de vida das plantas. Nessas condições naturais, a chuva não deixa o incêndio se espalhar. O resultado são manchas queimadas que transformam a paisagem em um mosaico heterogêneo que dificulta a propagação de grandes incêndios.

Tudo indica que o incêndio de 2017 na chapada dos Veadeiros foi criminoso, pois ele começou em locais diferentes em um pequeno intervalo de tempo. Os gestores do parque inferem que tenha sido uma reação de proprietários de terra ao aumento da área do parque, naquele ano ampliado de 65 mil hectares (ha) para 240 mil ha.

Mas ele foi ainda mais devastador devido a um equívoco no manejo do fogo. “Por muito tempo, a política de manejo do fogo dos parques brasileiros ignorou a necessidade de queimas controladas e adotou uma política de fogo zero, como se todo incêndio fosse uma ameaça a ser combatida a qualquer custo”, ressalta Flores. Quando o incêndio começou, fazia muito tempo que o parque não queimava, acumulando mais vegetação seca do que o normal.

Ele explica que a falta de incêndios naturais faz com que as plantas tolerantes ao fogo sejam substituídas por outras, mais sensíveis. A disseminação de espécies exóticas, como as gramíneas africanas para pastagem, que crescem rápido e fazem parte da política nacional de agropecuária, é outro fator. “Naquele ano a estação chuvosa começou mais tarde e choveu menos do que a média histórica anual, o que agravou a situação”, acrescenta Flores.

A queima controlada por brigada de incêndio, na estação chuvosa, agora é a norma em alguns parques do Cerrado, mas não é consenso. Para o biólogo Célio Haddad, do campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), seria necessário estudar os sedimentos para adquirir conhecimento de como eram os incêndios – em extensão e frequência – antes que a ocupação humana se tornasse um fator relevante, até em tempos pré-colombianos. “O manejo por fogo que costuma ser adotado é mais frequente do que deveria ser para a manutenção de um Cerrado natural”, afirma. “Além disso, provoca a morte de animais e o aumento da poluição por fumaça.” O estudo de Flores foi uma demanda do próprio parque, preocupado em desenvolver técnicas de manejo para proteger as florestas ripárias do fogo.


Projetos

  1. Explorando o risco de expansão de savanas na América do Sul Tropical sob mudanças climáticas (nº 16/25086-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Bolsista Bernardo Monteiro Flores; Investimento R$ 287.363,70.
  2. DendroGrad: Aplicando anéis de crescimento, anatomia da madeira e atributos hidráulicos em um gradiente ambiental para avaliar as respostas de crescimento de três espécies tropicais à fertilização por CO2 (nº 18/01847-0); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Peter Stoltenborg Groenendyk (Unicamp); Investimento R$ 1.140.641,23.

Artigos científicos


Este texto foi originalmente publicado pela Revista FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original

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