A Revista Ingesta, recém-publicada no Portal de Revistas da USP, traz, em seu dossiê sobre pesquisa internacional em alimentação, uma discussão sobre os significados simbólicos da cultura do milho no Brasil, abordando sua importância como alimento de resistência relacionado a uma sacralidade pouco visível na historiografia oficial.
De acordo com o artigo, o milho, proveniente das Américas, foi reverenciado nas civilizações pré-colombianas e também eternizado em objetos arqueológicos que revelavam rituais sagrados relacionados a esse alimento, principalmente na cultura dos povos maias. Esses objetos, além de conterem desenhos do cereal, representando fertilidade, apresentavam, em seu interior, grãos de milhos que eram ofertados para os deuses do submundo.
As autoras do artigo, as pesquisadoras Myriam Melchior, doutora em Memória Social e mestre em Comunicação Social e Cultura, e Marcella Sulis, mestre em Engenharia de Produção, Gestão e Inovação e especialista em Alimentação e Cultura, afirmam que, se de um lado os historiadores europeus viam o milho com maus olhos, como causador de doenças, por outro, nos cultos brasileiros, foi “o alimento escolhido para simbolizar a cura dos males associados à pele”, um protetor dos corpos negros e indígenas, desprezados e discriminados como inferiores aos brancos.
No período colonial, explicam as pesquisadoras, “o milho era visto apenas como alimento de subsistência para os colonizadores europeus e povos escravizados”. Porém, entre os povos indígenas, eram difundidas histórias sobre o milho, seus símbolos e rituais religiosos. Mais tarde, a popularidade do cereal e as celebrações festivas e religiosas associadas resultaram, hoje, em expressões e realizações em que arte é o elo entre os povos indígenas e os afrodescendentes na busca do respeito à formação de uma identidade brasileira que celebre, ao mesmo tempo, as diferenças e as igualdades.
A desvalorização do milho gera a desvalorização da cultura e o apagamento de tradição e memória. Nesse contexto, o objetivo do estudo foi realizar “uma análise comparativa, crítica e reflexiva, destacando as diferenças simbólicas e de significados sobre a utilização do milho no Brasil colônia e na Europa”, detalham Myriam e Marcella. Na perspectiva do colonizador, o milho era lembrado apenas em períodos de crise de abastecimento. Mas, no Brasil, nota-se que a difusão do cereal na alimentação popular se deveu, sobretudo, aos povos afrodescendentes, que adaptaram seu uso doméstico e ritualístico. O estudo sobre a sacralidade do milho aponta para critérios de transmissão “de uma cultura alimentar envolta em embates entre as suas representações socioeconômicas e suas potencialidades simbólicas, tanto mágicas como poéticas”.
As pesquisadoras mostram a importância desse grão na formação cultural, identitária e alimentar brasileira, buscando evidenciar a força da sacralidade do milho para as culturas afro-indígenas, possibilitando a sobrevivência das mesmas graças a esse alimento popular brasileiro, ingrediente de pratos típicos indígenas e africanos, como o angu e a pamonha.
O milho “como alimento de resistência associado a uma sacralidade é pouco visível à historiografia no âmbito da alimentação e da gastronomia”. Em contrapartida, as autoras contam que, no Brasil, a história do milho normalmente está associada à ideia de “comida de pobre”. Contribuíram para isso, entre outros motivos, políticas de branqueamento social, que abandonaram indígenas e afro-brasileiros à margem da cultura e dos sistemas econômicos e sociais; a valorização dos produtos industrializados e a urbanização alimentar, que estimula o consumo de fast-food e os tradicionais pratos gourmet, baseados na cozinha francesa.
No Brasil, com a herança portuguesa das festas juninas pelos rituais católicos, ao invés de se ter o trigo como objeto de celebração de plantio e colheita, o milho passou a ser o centro da festa como alimento simbólico. São José, São João, Santo Antônio e São Pedro, padroeiros das referidas festas, são representados pelos povos afrodescendentes com um orixá respectivo.
Segundo as pesquisadoras, “nas religiões africanas, os orixás são as forças da natureza que cuidam do equilíbrio energético de seus filhos”. Assim, os povos oprimidos e escravizados puderam, em sua cultura, reverenciar seus santos. Nos dias de oferenda, o grão de milho e a pipoca sempre foram os protagonistas de cerimônias como a Sabajé, consagrada a Obaluaiê e Omolu, orixás das enfermidades contagiosas e de pele, onde o milho atua como potência de força, paz e cura. Esse milho, segundo o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, exposto ao fogo para ser ingerido, transforma-se em uma pipoca macia, semelhante a uma flor. Preparada para os orixás Omolu e Obaluaiê, ela é chamada de “a flor do santo”.
As autoras citam as obras Bori Performance-Art e Buruburu, do artista brasileiro Ayrson Heráclito, revelando rituais e tradições africanas em que a espiga e o grão de milho são oferecidos aos orixás, em torno de suas cabeças. A primeira obra, Bori, retrata a busca da “comunhão entre os corpos físicos e espirituais […], pedindo proteção à mente e aos corpos”, explicam Myriam e Marcella. Em Buruburu, a chuva de pipocas é um ritual de purificação e simboliza a resistência, a força e a coragem dos povos colonizados diante do colonizador.
As autoras sugerem que se realizem pesquisas sobre como se dá o consumo contemporâneo do milho, seus significados culturais no Brasil de hoje, o grão como uma simples mercadoria “e as práticas colonialistas”.
Artigo: MELCHIOR, M.; SULIS, M. Grãos sacralizados: notas sobre a difusão popular do milho a partir do seu uso simbólico em rituais religiosos. Dossiê II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação. Revista Ingesta, v. 2, n. 1, p. 118-136, 2020. ISSN: 2596-3147. Disponível em: www.revistas.usp.br/revistaingesta/article/view/167218. Acesso em: 28 set. 2020.
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