Em um quadro de risco global causado pela pandemia da Covid-19, com ameaça de saturação dos sistemas de saúde e necessidade de coordenação dos estados nacionais, monitorar dados da população tornou-se uma medida emergencial adotada por diversos países. O uso de drones que alertam pessoas aglomeradas para ficar em casa e o emprego de dispositivos individuais que acompanham os sintomas do paciente são alguns dos sistemas a que governos têm recorrido. Entre os mais utilizados estão aqueles que se valem da geolocalização proporcionada por smartphones, hoje de uso universal. O uso dessas tecnologias traz à tona a discussão sobre o que deve prevalecer, se a segurança coletiva ou o direito à privacidade dos cidadãos.
É com informações dos telefones celulares, por exemplo, que são estabelecidos índices que medem a adesão às medidas de isolamento social, importantes para evitar o alastramento veloz do contágio e, também, estabelecer o momento em que medidas de confinamento podem ser abrandadas. No caso brasileiro, por iniciativa da empresa pernambucana Inloco, criou-se o Índice de Isolamento Social, hoje utilizado por mais de 20 governos estaduais, entre eles Pernambuco, Bahia, Amapá, Amazonas, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina, além de diversas prefeituras.
O índice é simples: uma vez estabelecido o local onde o celular passa a noite, verifica-se se a pessoa, ao longo do dia, se deslocou desse ponto, ultrapassando um raio de 450 metros (m). Do total de aparelhos monitorados, afere-se o percentual daqueles que ultrapassaram a distância preestabelecida. O Índice de Isolamento Social da localidade, seja ela um bairro, uma cidade ou um estado, é obtido pela simples subtração desse percentual do total. Se 48% ultrapassaram o raio, a taxa é de 52%, ou 0,52.
Essa tecnologia está integrada a uma série de aplicativos que, ativados pelo usuário, fornecem uma localização ainda mais precisa, com margem de erro de 3 m. Quando da instalação desses aplicativos, os usuários dão o consentimento para a coleta de dados por parte da Inloco. O sistema, que se compromete a manter os dados individuais anônimos, utiliza vários recursos para a geolocalização, como GPS, redes wi-fi, bluetooth e sensores inteligentes dos smartphones. “Todos esses sensores trabalhando juntos garantem a precisão da tecnologia”, diz Luciano Melo, cientista de dados da empresa.
O estado de São Paulo criou outra ferramenta para medir o isolamento social, batizada de Sistema de Monitoramento Inteligente (Simi-SP). O governo aproveitou a equipe e os recursos tecnológicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que integrou dados de transportes e saúde, e fez parceria com a ABR Telecom, que reúne as quatro operadoras de telefonia que atuam no estado (Vivo, Claro, Oi e Tim), para usar os dados da rede de antenas pertencentes a elas.
Segundo o cientista da computação Alessandro Santiago, pesquisador do IPT, os dados são processados diariamente pelas operadoras. Em seguida, índices e mapas são repassados ao instituto de forma anônima e agregada, ou seja, sem que possa haver identificação dos usuários. O local de residência presumido é aquele em que a pessoa permanece entre 22 horas (h) e 2h. A medição se dá pelo cruzamento dos dados das antenas. Quando o celular passa da área de cobertura de uma antena para outra, considera-se que houve deslocamento. O grande número de antenas das operadoras permite capilaridade quase completa no estado.
O senão fica por conta da menor precisão de localização, com variação de até 200 m. O pesquisador ressalta, contudo, que esse fator não impacta a forma de medir se houve ou não quebra do isolamento. Ele destaca, ainda, que não há necessidade de instalar nenhum aplicativo nos celulares, permitindo que mesmo aparelhos mais simples sejam monitorados, o que estende a cobertura para pessoas com menor poder aquisitivo. O desenvolvimento do Simi-SP contou com apoio de um projeto relacionado a cidades inteligentes financiado pela FAPESP.
A preocupação em monitorar o deslocamento dos cidadãos em meio à pandemia é global. Num primeiro momento, diversos países, entre eles Estados Unidos e Reino Unido, optaram por firmar parcerias com companhias de telefonia para medir a movimentação da população, por se tratar de dados mais fáceis de serem agregados e darem resposta mais rápida à demanda. Porém, com o passar do tempo e os desafios enfrentados para entender as variáveis de um vírus novo, entre elas sua velocidade de disseminação, o refinamento da informação tornou-se cada vez mais necessário. Isso levou à necessidade de empregar tecnologias mais precisas e de ter acesso a informações que acabam por identificar o usuário.
No âmbito tecnológico, os sistemas de geolocalização tornam-se mais acurados conforme mesclam tecnologias variadas. O cientista da computação Fernando Osório, do Departamento de Sistemas da Computação do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação de São Carlos da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), avalia que o GPS é o melhor sistema. Mesmo assim, exige uso combinado com outros para garantia da obtenção dos dados.
“Ele é bastante granular, como dizemos, com erro de apenas alguns metros. A desvantagem é que não funciona em ambientes fechados, como dentro das casas. Por isso, o celular utiliza um misto de informações oriundas de telefonia [o sinal 3G ou 4G], GPS e wi-fi”, explica. Pensando em termos de prós e contras – nem sempre há uma rede de wi-fi próxima, a telefonia pode falhar em estradas e o GPS não é bom em locais fechados –, os três sistemas são complementares.
Alguns aplicativos que vêm sendo utilizados para controlar os deslocamentos da população empregam a tecnologia bluetooth, que possibilita a troca de informação entre dois usuários, também de forma anônima. Já utilizado em Singapura – e agora também anunciado como a engrenagem por trás de uma tecnologia fruto de parceria entre Google e Apple –, esses sistemas alertam para a proximidade de outra pessoa com sintomas ou portadora da Covid-19, desde que ela também use o aplicativo.
A tecnologia, no entanto, necessita que os dois usuários estejam com o bluetooth ativado e tenham se comprometido a notificar o aplicativo em caso de contaminação. O ID, ou identificação, de cada usuário não é revelada, tornando o processo anônimo e do conhecimento só dos envolvidos. É o que se batizou de monitoramento descentralizado, em oposição ao centralizado, em que todos os dados convergem para um mesmo lugar.
Como explica a cientista de dados Kalinka Castelo Branco, do ICMC, o bluetooth e sistemas similares só serão úteis em casos específicos. “Funcionam bem para países que têm alto índice de testes e sabem se as pessoas estão com a infecção”, esclarece.
Como não é fácil manter o confinamento da população, vários países têm adotado estratégias diversas para manter o isolamento social. Israel, por exemplo, tem feito um controle ostensivo e individualizado, quando necessário, recorrendo à telefonia. O governo valeu-se de procedimentos invasivos por entender que a situação atualmente vivida se assemelha àquela em que se corre o risco de ataques terroristas – ocasiões em que os direitos individuais cedem espaço à segurança social. As autoridades israelenses, entretanto, já avisaram que as informações serão descartadas 30 dias após coletadas – uma garantia prevista nas novas leis de proteção de dados mundo afora.
No Brasil, o destino dos dados utilizados para o monitoramento da população causa preocupação, principalmente pelo fato de a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ter tido adiada sua entrada em vigor, em razão da pandemia. Ela deveria começar a valer a partir de agosto, com as sanções previstas pelo seu não cumprimento sendo ativadas em 2021. No entanto, projeto do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) prevê agora sua validade para janeiro de 2021. Para virar lei, o projeto ainda precisa passar pela Câmara dos Deputados e ser sancionado pela Presidência da República.
Especialistas apontam que mesmo a nova lei de privacidade tem seus limites e não são todas as informações individuais que estão plenamente salvaguardadas. A LGPD está assentada na ideia de que os indivíduos devem ter meios de controlar a forma como se expõem. Uma forma de fazer isso é o controle sobre o uso das informações coletadas por terceiros, bem como seu armazenamento, tempo e forma de descarte.
“Quando uma operadora divide informações com o governo, o discurso oficial é que só os dados agregados e sem identificar os usuários estão sendo compartilhados”, diz o advogado Alexandre Pacheco, professor de Direito e Tecnologia da FGV-Direito, em São Paulo. “O problema é que não temos nenhuma garantia ou prova de que os dados transmitidos são apenas aqueles não identificados, que registram apenas nossa movimentação”, ressalva o especialista.
“Precisamos acreditar que estão fazendo isso. Mas o ideal é que seja algo criptografado. Se a LGPD estivesse em vigor, ela discriminaria a forma de tornar anônimos os dados para dar mais segurança ao usuário”, reforça Castelo Branco, do ICMC.
O que parece ser uma aparente contradição é que, durante a pandemia, o emprego de dados pelo governo poderia até mesmo contar com mais informações do que as que estão sendo repassadas. A própria lei prevê que, no caso de políticas públicas e questões de saúde, esse uso é facultado às autoridades. Sua utilidade é fácil de ser constatada. Variáveis como sexo, idade e histórico de saúde, analisadas com ferramentas de inteligência artificial, poderiam trazer novos elementos para o combate ao vírus. A justificativa para que a lei ainda não esteja em vigência é o fato de órgãos públicos e empresas não terem se preparado para todas as suas exigências.
Na falta da LGPD, a Lei Geral de Telecomunicações (nº 9.472/97) garante o princípio do respeito à privacidade dos dados pessoais, porém está longe de ser tão específica na forma em que se deve proceder a coleta, o uso, o armazenamento e o descarte das informações. “Hoje, durante a pandemia, parece lógico consentir o uso de mais informações pessoais. O problema é o day after”, resume Pacheco. Até porque, segundo ele, não se sabe se estão sendo feitos relatórios que permitam rastrear os dados e se eles podem, eventualmente, ser desagregados novamente.
Assim como epidemiologistas, virologistas e infectologistas preveem que novos vírus aparecerão nos próximos anos, cientistas da computação sabem que a segurança da informação no ambiente virtual também será um dos grandes desafios desses novos tempos.
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