Nos últimos meses, frigoríficos de diversas localidades foram associados ao aumento de casos de infecção por covid-19. O frigorífico Tönnies, na Renânia do Norte-Vestfália, Alemanha, foi fechado temporariamente e a processadora de carne de porco Smithfield, nos Estados Unidos, se tornou grande foco da doença em Dakota do Sul, um dos estados menos povoados do país. No Brasil, reclamações envolvendo abatedouros e contaminação por covid-19 proliferam e 20% dos trabalhadores do setor foram infectados, segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTA).
Os surtos nos frigoríficos e a liderança mundial da China como produtora de carne suína chamaram a atenção da pesquisadora e professora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Larissa Mies Bombardi, do farmacêutico alemão Immo Fiebrig e do técnico do Laboratório de Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento do Departamento de Geografia da USP, Pablo Nepomuceno, que passaram a analisar a questão.
Em dois artigos, eles mostram a correlação espacial entre o aumento de infectados pelo covid-19 e a criação intensiva de porcos no Brasil, nos Estados Unidos e na Alemanha. Levantam também a hipótese, ainda não comprovada, de que o modelo atual de agropecuária, especificamente a criação industrial de suínos, pode favorecer a propagação do vírus, tendo os porcos como vetores da contaminação. “Trata-se de uma hipótese, mas a correlação espacial é enorme”, diz Larissa Bombardi.
Santa Catarina, responsável por 25% da produção de carne suína do Brasil, foi a primeira evidência apontada no primeiro artigo publicado. Com alta taxa de pessoas infectadas, o oeste catarinense é também uma região de criação intensiva de porcos. Por sua baixa densidade demográfica, a área não seria candidata natural às altas taxas de covid-19, diferentemente de trechos mais povoados e com alta contaminação, como acontece na região litorânea do estado.
“A interiorização do novo coronavírus no Brasil está muito ligada aos frigoríficos”, afirma Larissa. “Isso tem relação com duas coisas: a condição insalubre de trabalho humano e a condição precária de criação dos animais”. O artigo acende um alerta sobre a entrada de excrementos de porcos, sem tratamento, em corpos de água, com o risco de infectar a água potável para consumo humano e alastrar a doença. “Seria fundamental uma testagem dos dejetos dos porcos”, avisa a pesquisadora.
O mesmo padrão de correlação espacial entre covid-19, criação de porcos e baixa densidade demográfica notado em Santa Catarina se repete nos outros estados do Sul, região responsável por 66% da produção nacional de carne suína. Também nos Estados Unidos se observa o mesmo padrão. Na Alemanha, a região noroeste, com maior produção de porcos, repete a correlação espacial, mas é bastante povoada, diferenciando-se nesse aspecto dos outros dois países analisados no segundo artigo publicado sobre o tema.
A teoria inicial, amplamente divulgada, de que o nascedouro do SARS-CoV-2, vírus que causa a covid-19, seria os mercados úmidos em Wuhan, foi negada em um estudo publicado em maio. Segundo o estudo, o vírus já circulava no país anteriormente e a primeira transmissão de animais para seres humanos ocorreu antes do surto nos mercados de rua. Especialistas do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) também declararam que o SARS-CoV-2 não teve o mercado de Huanan como local de origem, mas como local de disseminação. Cientistas tampouco acreditam que o vírus tenha surgido e depois escapado a partir de engenharia genética em um laboratório.
Muitos apostam na existência de um hospedeiro intermediário para o vírus, fazendo a ponte entre morcegos e seres humanos. Se a China é o maior produtor de carne suína do mundo, a província de Hubei, onde fica Wuhan, é um dos cinco maiores produtores de suínos da China.
“Há muitas similaridades entre os porcos e nós, que vão desde o sistema respiratório até o sistema gastrointestinal”, diz Larissa Bombardi. Vírus de gripes encontrados em porcos não são novidade. Os porcos são capazes de pegar, ao mesmo tempo, um vírus da gripe aviária e outro da gripe humana, e gerar combinações inéditas, que poderão ser novamente transmitidas, infectando seres humanos.
Foi o que aconteceu em março de 2009, quando surgiu no México uma gripe com infecção respiratória numa região próxima a uma criação industrial de porcos. No mês seguinte, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarava a pandemia de gripe suína H1N1.
Estudo recente, publicado no periódico científico norte-americano Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), mostra a análise dos vírus de gripe detectados em porcos entre 2011 e 2018 na China. Entre os vírus encontrados, está uma versão do H1N1 com características potencialmente pandêmicas. Segundo a pesquisa, o vírus não representa ameaça iminente, mas os cientistas pediram urgência no monitoramento rigoroso do vírus e das populações humanas, especialmente os trabalhadores da indústria suína.
Dadas as condições precárias em que vivem, os porcos de criação intensiva são animais potencialmente imunodeprimidos, o que leva ao uso excessivo de antibióticos e outros medicamentos.
A criação de porcos no Brasil é preponderantemente intensiva: mais de 70% dos animais são criados de forma confinada. “Esses animais não têm acesso ao solo ou luz solar e consomem ração majoritariamente transgênica porque no Brasil mais de 90% da soja produzida é transgênica”, diz Larissa. “Eles recebem ainda antibióticos ou outros medicamentos no cotidiano da alimentação porque se alimentam e defecam praticamente no mesmo lugar. Então, são animais potencialmente imunodeprimidos.”
Para o biólogo Rob Wallace, a criação intensiva de animais praticada nos últimos quarenta anos é a causadora dos novos vírus que ameaçam o planeta com epidemias e pandemias. Autor do livro Pandemia e Agroindústria, ele explica que o equilíbrio da diversidade é fundamental na natureza, e que a criação intensiva não respeita essa premissa ao juntar grande quantidade de animais de forma homogênea: mesma raça, idade e sistema biológico. Ao considerar que as condições de superlotação inibem a resposta imunológica, o biólogo compara esse modelo de criação a uma praga gigante.
Mesmo o Brasil sendo o quarto maior produtor mundial de carne suína, “a competição com outros países é um desafio, devido à ausência de fatores que sustentam a produção, tais como: biossegurança, sanidade, investimento em mão de obra e principalmente na promoção do bem-estar animal”, diz um artigo de março de 2019 sobre o bem-estar animal na suinocultura.
Enquanto por aqui certas práticas são aplicadas amplamente, em outros países elas são evitadas ou coibidas, como o uso de gaiolas individuais na gestação do animal. Condições desfavoráveis ao bem-estar dos animais podem ser notadas, muitas vezes, no comportamento anormal de automutilação, canibalismo, agressividade excessiva ou apatia.
O próprio setor suinícola brasileiro diz esperar já há dois anos pela publicação da Instrução Normativa de bem-estar animal (BEA) em suínos, que deverá regulamentar principalmente questões relacionadas ao bem-estar animal, fazendo com que os atuais projetos do setor sejam construídos já de acordo com as novas normas.
A criação de porcos no Brasil é preponderantemente intensiva: mais de 70% dos animais são criados de forma confinada, o que torna as granjas de suínos potenciais laboratórios de novos vírus.
A China segue disparada na frente como líder mundial na produção de suínos. Na sequência, vêm a União Europeia, os Estados Unidos e, em quarto lugar, o Brasil, que também é o quarto maior exportador de carne suína. Segundo dados do Boletim do Suíno, do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), nos sete primeiros meses deste ano o Brasil exportou a maior quantidade de carne de porco já exportada no mesmo período de anos anteriores. Se os embarques continuarem nesse ritmo, o setor estima que, em setembro, já terá superado as 639,5 mil toneladas exportadas ao longo de todo o ano de 2019. Essa grande demanda tem influenciado na alta dos preços.
Os porcos alimentam-se basicamente de ração produzida com milho e soja e cerca de 79% da soja no mundo é esmagada para fazer ração animal. Com a alta demanda da carne, cresce também a demanda pelos grãos. No mundo, 50% da soja exportada é brasileira. No Brasil, a soja representa 40% do total de exportações do agronegócio. Para dar uma ideia do que isso significa em termos de dimensão, a área destinada ao cultivo de soja no Brasil equivale ao território da Alemanha.
Projeções do setor sinalizam crescimento na demanda mundial de soja, principalmente na Ásia. Segundo estimativas da Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja), em 2019 o Brasil exportou 60 milhões de toneladas para a China e este ano poderá exportar até 66 milhões. Com novos recordes, a Aprosoja afirma em seu boletim: “China segue comprando soja do Brasil, por ser a mais ‘barata’”.
Na lista dos impactos ambientais causados pela criação e abate de porcos em massa está a ameaça do avanço do desmatamento sobre o Cerrado e a Amazônia para implementação de monocultura de soja ou milho, além das queimadas e da contaminação pelo intenso uso de pesticidas na produção dos grãos transgênicos. Nessa conta, pesquisadores ainda somam o impacto social na segurança alimentar do país por causa da redução das áreas destinadas a plantio para alimentação humana.
“Há uma correlação clara entre a expansão de soja e milho e a alimentação dos animais, seja no Brasil, seja na quantidade de grãos, que têm como destino o mercado externo” afirma Larissa Bombardi.
Em fevereiro deste ano, Larissa, também autora do atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, fez a palestra “Vivendo Sob o Veneno” na plataforma sobre alimentação Fru.to. Na ocasião, ela citou a frase de Eduardo Galeano, escritor uruguaio: “A soberania começa pela boca”, levando à reflexão de que as decisões acerca da produção e consumo de alimento têm peso e consequência.
O desmatamento na Amazônia para pecuária, agricultura e exploração madeireira, junto às mudanças climáticas globais, está levando a Amazônia ao ponto de não-retorno que pode significar uma rápida extinção da floresta. Essa é uma parte já conhecida das consequências que cabem, em parte, ao agronegócio.
Como alertam pesquisadores, é preciso vigiar a criação industrial de suínos. Outros pesos e consequências ainda podem vir. “A possibilidades desses animais serem receptáculo e laboratório para outros vírus é enorme. Essa é uma questão com a qual teremos que lidar, eu penso, a curto prazo. Isso pode ser, sim, um canal para outra pandemia”, conclui Larissa.
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