As queimadas na Amazônia não causam prejuízo apenas para o ecossistema ou para o clima, mas também para a saúde da população. Não é surpreendente, mas agora a afirmação se baseia em um estudo recente: em 2019, foram ao menos 2.195 internações na região amazônica devido a doenças respiratórias, a maior parte delas de pessoas com 60 anos ou mais (49% dos casos) e bebês de até 12 meses (21%). As internações resultaram em um total de 6.698 dias no hospital, a um custo para o sistema de saúde estimado em R$ 5,64 milhões. As informações, do relatório “O ar é insuportável”, foram baseadas em estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) e da organização não governamental Human Rights Watch (HRW).
“Essa é apenas a ponta do iceberg, pois não há como incluir na análise todos os tipos de atendimento para avaliar o impacto real da fumaça sobre os serviços médicos”, diz o cientista político Miguel Lago, diretor-executivo do Ieps. “Atendimentos de ambulatório, por exemplo, não foram computados. Além disso, focamos apenas em problemas respiratórios, que poderão exacerbar a crise da Covid-19.” O impacto na saúde de populações que vivem longe dos centros urbanos também pode não ser notificado. Este ano, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) já registrou mais de 64 mil focos de incêndio na Amazônia (11% a mais do que o período similar em 2019) e mais de 15 mil no Pantanal (um aumento de 220% em relação ao ano passado), de acordo com dados atualizados em 14 de setembro.
“Há uma clara correlação entre a emissão de material particulado fino [PM2,5], principal poluente da fumaça, que foi detectado por satélites do Inpe, com o número de internações na região obtido no sistema DataSUS”, afirma o economista André Sant’Anna, da Universidade Federal Fluminense. Ele foi o responsável pelas análises estatísticas apresentadas no estudo “Impactos dos incêndios relacionados ao desmatamento na Amazônia brasileira sobre a saúde”, uma nota técnica publicada pelo Ieps em agosto de 2020.
A intoxicação por poluição do ar pode provocar problemas crônicos que diminuem o tempo de vida ou agravar o quadro de um paciente já debilitado e levá-lo à morte. Esse efeito foi corroborado por outro estudo, que estima 5 mil mortes prematuras causadas pela fumaça de 2019. O estudo relaciona a quantidade de poluição emitida com os problemas de saúde decorrentes da fumaça, ponderando possíveis mortes prematuras. “Usamos um modelo meteorológico e de química atmosférica para estimar a população afetada pela fumaça”, explica o engenheiro norte-americano Muhammad Omar Nawaz, estudante de doutorado na Universidade do Colorado em Boulder e um dos autores do artigo publicado em julho na revista GeoHealth. “Depois, relacionamos a exposição aos poluentes com problemas de saúde, estabelecendo o número de mortes prematuras decorrentes da fumaça de 2019.”
“O PM2,5 pode causar pneumonia, doenças respiratórias, infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral e, quando a exposição é crônica, câncer de pulmão e peso baixo ao nascer”, informa o médico patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). “Pode afetar também a qualidade do sêmen, fazendo com que nasçam mais mulheres do que homens.” Segundo ele, a poluição do ar está relacionada a no mínimo 4 mil mortes prematuras por ano na cidade de São Paulo.
“Incêndios na Amazônia não ocorrem de forma natural. Com frequência, os responsáveis são agentes associados a grilagem de terras públicas ou áreas indígenas, agropecuária ou especulação de terra”, afirma o físico Paulo Artaxo, da USP. O procedimento para a derrubada de florestas tem duas etapas: desmatam no fim da estação chuvosa, entre abril e maio, e esperam a estação seca, que ocorre entre agosto e outubro, para atear fogo.
Desde o ano passado, com algumas ações dos governos federal e estaduais para coibir os incêndios na Amazônia, houve um acúmulo de áreas desmatadas que não foram queimadas. Essas áreas não queimadas podem se somar a outras que tiveram a floresta derrubada de lá para cá. Com isso, a área disponível para a queima em 2020 pode dobrar – em 2019, o fogo atingiu 5.500 quilômetros quadrados (km2) na região.
“Estudo recente da Nasa, a agência espacial norte-americana, mostrou que 65% das áreas queimadas este ano são novas, ou seja, foram desmatadas em maio-junho de 2020”, ressalta Artaxo, que assina uma das notas técnicas do Ipam usadas como base do relatório. “O Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] tem um importante programa de prevenção de queimadas, o Prevfogo, com uma grande equipe de brigadistas e técnicos, que foi bastante enfraquecido desde o ano passado. Combater incêndios não é fácil e requer treinamento específico, mas o pessoal do Exército está sendo utilizado de improviso”, afirma. “O Estado brasileiro não está mais preparado para conter os incêndios florestais de grandes proporções.”
Além disso, as queimadas se tornam mais intensas com a baixa umidade e, neste ano, a previsão é de tempo seco. O clima deve ser semelhante ao de 2005 e 2010, anos com altos índices de queimada, segundo previsão do geógrafo norte-americano Douglas Morton, da Nasa, e do engenheiro ambiental chinês Yang Chen, da Universidade da Califórnia em Irvine, Estados Unidos, autores da previsão para a estação de incêndios da Amazônia.
O aumento das queimadas torna ainda mais dramática a situação do sistema de saúde da região, atacando o sistema respiratório de pacientes e um sistema hospitalar já fragilizado com a Covid-19. “Como os leitos de UTI [Unidade de Terapia Intensiva] com respiradores estão concentrados nas capitais, a população precisa se locomover a grandes distâncias para ser atendida, algo arriscado em plena pandemia”, aponta Lago. “Na Amazônia, a distância é mais do que o dobro da média nacional até a UTI mais próxima, de 155 km, mas a partir de algumas aldeias indígenas no interior da Amazônia é preciso viajar entre 700 e 1.000 km para chegar a uma cidade com atendimento médico.”
O combate ao fogo pode diminuir a fumaça das queimadas e a poluição das cidades. Mas também é importante reconhecer o problema, estabelecendo padrões de qualidade do ar capazes de proteger a saúde da população em termos da exposição ao PM2,5. “Em São Paulo, o limite legal para a concentração do poluente é de 20 microgramas por metro cúbico, o dobro do padrão preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Atingir os padrões de qualidade do ar é difícil, mas ocultar o problema, afirmando que a qualidade do ar está adequada, não é a melhor solução. Seria importante que todos tivessem consciência da situação para promover a mudança”, alerta Lago. Esse monitoramento de uma qualidade de ar dentro de padrões aceitáveis poderia ser aplicado a cidades afetadas por incêndios às vezes muito distantes, já que a fumaça das queimadas na Amazônia, no Pantanal e em zonas rurais pode ter impacto ao longo de seu transporte, atingindo até grandes cidades das regiões Sul e Sudeste.
O mesmo vale para a Amazônia: “As autoridades precisam reconhecer que estamos diante de uma crise ambiental e de saúde, e agir imediatamente”, defende Lago. “Estamos divulgando os resultados e levando esse alerta para os governos federal e estaduais.” Como o PM2,5 é levado pelo vento, os afetados estão em diversas regiões do país. “Frequentemente, essas emissões de queimadas da Amazônia atingem o estado de São Paulo. No ano passado uma conjunção de fatores, como a entrada de uma frente fria forte, intensificou o fenômeno, fazendo com que a tarde virasse noite em São Paulo. Isso pode acontecer de novo, dependendo das condições meteorológicas”, alerta Artaxo.
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais