Espalhados pelos arredores dos municípios de Itaituba e Jacareacanga, no Pará, maior polo de mineração ilegal do Brasil, os garimpos de Raimunda Oliveira Nunes revelam um empreendimento familiar que, ao longo de décadas, já submeteu dezenas de trabalhadores a condições análogas à escravidão.
Uma grande operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), ligado à Secretaria de Inspeção do Trabalho, do governo federal, realizada em agosto de 2018, resgatou 38 trabalhadores no garimpo Coatá, de propriedade de Raimunda, em Jacareacanga. Nova operação, ocorrida em outubro de 2020, encontrou outros 39 trabalhadores nas mesmas condições em garimpos de Raimunda e seus familiares na mesma região.
Ambas estão entre as maiores operações do tipo já feitas em garimpos e áreas de extração de minérios no Brasil. Os funcionários do garimpo eram mantidos em condições degradantes de trabalho, o que incluía alojamentos improvisados, ausência de banheiros no local, consumo de água contaminada, falta de equipamentos de proteção, cobranças indevidas que resultaram em servidão por dívida e nenhum vínculo formal.
Investigação conduzida pela Mongabay mostra que a reincidência não acontece por acaso. Mesmo após a operação de 2018, Raimunda Oliveira Nunes e seus filhos, Raifran e Tamis Danielle, registraram requerimentos minerários na Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão federal ligado ao Ministério de Minas e Energia, e obtiveram a aprovação de quatro deles.
Em outubro de 2018 – apenas dois meses após a operação do GEFM –, Raimunda conseguiu uma permissão de lavra garimpeira em Itaituba com validade até o ano de 2023. Outro requerimento de pesquisa, datado de 2011, segue em trâmite. Já Raifran Oliveira Nunes, responsável pela administração dos garimpos, protocolou oito requerimentos de pesquisa e lavra na ANM entre 2018 e 2020. E ainda obteve três autorizações concedidas para pesquisa, todas válidas até 2022.
“A ANM deveria fazer uma vistoria para monitorar esse tipo de ocorrência e fazer bloqueios. Deveria existir um pente fino, olhar para a questão do trabalho escravo, olhar para pessoas que descumpriram leis e exploraram ilegalmente”, afirma o procurador Paulo de Tarso Moreira, do Ministério Público Federal (MPF), autor da denúncia na qual Raimunda teve sua prisão preventiva decretada após a operação de 2018.
No dia 20 de outubro de 2020, apenas uma semana antes da segunda operação, Raimunda Oliveira Nunes foi condenada pela Justiça Federal a cinco anos e três meses de prisão por ter submetido os trabalhadores do garimpo Coatá a condições análogas à escravidão. Raimunda recorreu da sentença e não estava no garimpo durante a operação.
Procurada pela reportagem, a advogada de Raimunda afirma que não vai se manifestar. A assessoria da ANM não esclareceu se estava ciente do caso, quais critérios levaram à concessão dos requerimentos e quais medidas seriam tomadas a partir das informações apresentadas por esta reportagem.
“A gestão da ANM é capturada por interesses privados. Não é voltada para o bem público. O MPF entrou com ações em que pedimos que a ANM sequer protocole alguns requerimentos por serem flagrantemente ilegais e inconstitucionais”, afirma Paulo de Tarso.
O registro de requerimentos na ANM é parte da sofisticação do crime, que incluiu também a criação, em 2020, de uma suposta cooperativa de garimpeiros no Pará, tendo Raimunda como presidente e seus filhos como diretores. A “cooperativa” seria uma forma de mascarar as condições reais dos trabalhadores e dos próprios garimpos, além de tentar vender a ideia de que os garimpeiros estavam organizados por conta própria.
Distribuídas por vários pontos de extração na mesma região, as frentes de trabalho do garimpo Pau Rosa contavam com quatro retroescavadeiras que custam até 1 milhão de reais cada e causam enorme dano ambiental, inclusive dentro da Floresta Nacional do Amana, no Amazonas, uma das áreas mais preservadas do Médio Solimões.
Segundo Magno Riga, Auditor Fiscal do Trabalho e Coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, a maioria dos trabalhadores resgatados na operação deflagrada no ano passado estavam no garimpo desde 2019 e são naturais do Pará ou do Maranhão. A tentativa de dar um verniz legal aos garimpos, no entanto, está justamente nos requerimentos.
“As áreas em que encontramos garimpos não tinham nenhuma permissão de lavra. O que eles argumentaram é que, muito próximo dali, havia um requerimento de pesquisa recente que não tinha sido deferido [e que havia sido] feito em nome do Raifran. Portanto, não havia autorização de direito minerário e, sim, usurpação do minério”, afirma Riga.
A investigação da Mongabay também encontrou 11 registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR), todos feitos em abril e maio de 2018, nos nomes de Raimunda, Raifran e Tamis Danielle. No total, são mais de 7 mil hectares registrados nos nomes dos três que se localizam nos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Rurópolis.
O registro da suposta propriedade da terra, autodeclaratória e não equivalente a um título legal, é mais um passo na direção de forjar um cenário de “busca pela regularização”, dizem os entrevistados. A cooperativa, quase todos os requerimentos na ANM e os registros no CAR foram feitos a partir de 2018, época da primeira operação, o que, de acordo com as fontes ouvidas pela Mongabay, evidencia um esforço coordenado.
Na prática, o CAR tem sido utilizado como instrumento da grilagem de terras, servindo aos propósitos do garimpo ilegal. “Isso é notório. Os requerimentos na ANM e o CAR operam na mesma lógica. A pessoa faz o pedido e se sente no direito de explorar aquela área”, afirma o procurador Paulo de Tarso, do MPF.
Procurada, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará (Semas) afirma que “faz avanços na análise e validação do CAR, com 3.750 análises por mês” para evitar a sobreposição de cadastros em áreas de preservação ou de propriedade alheia.
Segundo a Secretaria, é “importante ressaltar que a Semas não tem poder de polícia e nem atuação em esfera trabalhista. Conforme a legislação, o CAR só poderá ser cancelado se houver inconsistência nos dados, sobreposição ou ordem judicial”.
Raimunda entrou na “Lista Suja do Trabalho Escravo” em abril de 2020 – um efeito prático da operação de 2018. Mesmo assim, seguiu cometendo o mesmo crime. A Defensoria Pública da União e o Ministério Público do Trabalho pediram e conseguiram na justiça o bloqueio de valores e bens de Raimunda e demais empregadores (seus filhos e representantes) para garantir o pagamento de verbas trabalhistas e danos morais.
As fontes ouvidas pela reportagem são unânimes em considerar que a crise econômica, a alta do dólar e do preço do ouro, somadas às péssimas condições de vida e falta de escolaridade, acabam empurrando milhares de trabalhadores para os garimpos ilegais. Muitas vezes, é difícil até que eles se reconheçam em situação precária por falta de referência e por verem diversos abusos como “normais”.
“Muitos garimpeiros não se consideram aviltados na sua dignidade, salvo um ou outro caso que tem a percepção de que está sendo explorado. A sujeição a condições degradantes para eles é natural”, afirma Leonardo Juzinskas, procurador do MPF que participou da operação de 2020.
Para Juzinskas, a explicação para a reincidência do crime é que, do ponto de vista econômico, vale a pena encarar as consequências. “É lucrativo para quem está sendo penalizado”, diz. Estimativas de um garimpeiro que trabalhava para Raimunda, por exemplo, calcula em cerca de dois milhões de reais por mês o lucro líquido de uma única frente de garimpo. Isso faz com que regiões como Itaituba atraiam milhares de trabalhadores.
De acordo com o procurador Paulo de Tarso, as condições de trabalho sempre foram precárias nos garimpos. O que houve na última década foi o uso intensivo de máquinas pesadas. Somada às condições econômicas atuais, a exploração se multiplicou.
“Aquilo que é inadmissível como condição de trabalho em alguns lugares não é visto assim por aqui. Para quem não tem acesso à informação e sequer a documentos básicos, com um índice de desenvolvimento humano baixo, como é no Pará, essas pessoas acabam se submetendo a relações de trabalho degradantes.”, afirma Paulo de Tarso.
Mais de 50 mil pessoas foram resgatadas pelos fiscais do trabalho em solo brasileiro desde 1995. Segundo estimativas da ONG Australiana Walk Free, que criou o Global Slavery Index, 370 mil pessoas no Brasil vivem sob condições análogas à escravidão.
Fonte: Mongabay – Licenciado sob Creative Commons Attribution-NoDerivatives 4.0 International License
Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos.
Saiba mais